Especialistas em clima comentam os capítulos mais recentes da crise global que levou termômetros de países como Reino Unido, Portugal e Espanha a baterem recordes históricos
A onda de calor que já deixou mais de mil mortos, provocou incêndios em série e levou termômetros de vários países europeus a temperaturas recorde é mais uma prova de que a coisa será cada vez mais frequente, intensa e fatal, inclusive nos países ricos. A pedido do Observatório do Clima, cinco especialistas comentam os capítulos mais recentes do nosso Big Brother infernal, e as consequências da inação em países como o Brasil:
Paulo Moutinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)
“A onda de calor sem precedentes que atinge a Europa revela a gravidade da crise climática global. O clima do planeta não só está mudando, mas essa mudança é mais rápida do que se previa. E ela não é exclusividade europeia. Na Amazônia, a mudança do clima já é algo palpável e acontece numa escala regional. A ocorrência cada vez mais frequente de eventos extremos, como o El Niño, combinados com o avanço do desmatamento na região, tem levado a alterações climáticas que resultam em muito calor e seca. Para se ter uma ideia, esta combinação já aumentou a temperatura na bacia do Rio Xingu. De 2000 a 2010 houve um aumento acima de 0,5°C. Parece pouco, mas é o suficiente para alterar o regime de chuvas na região, com potencial de redução de produtividade no campo, mais incêndios e perdas socioambientais. Além de global, a crise climática é local e afetará primeiramente os brasileiros.”
Ricardo Abramovay, Professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP)
“Em 2020, os modelos empregados pelo serviço meteorológico britânico alertavam para uma desastrosa onda de calor que se abateria sobre o país exatamente no dia 23 de julho de 2050. As temperaturas projetadas nestes modelos foram, de fato, atingidas poucos dias antes desta data, mas 28 anos antes do que se temia, segundo o Washington Post. Os cientistas não chegaram a se surpreender diante do aumento em quase 50 graus na temperatura do Ártico, em março de 2022, com relação ao que prevalecia no Polo Norte habitualmente nesta época do ano. Mas ganhou as manchetes a constatação de que neste mesmo período, literalmente do outro lado do mundo, em vez dos 43 graus negativos, que em geral se registrava no mês de março, os termômetros indicavam 10 graus negativos. Nunca os meteorologistas haviam constatado o derretimento de gelo em tal velocidade nos dois polos do Planeta. Quando a democracia brasileira afastar os negacionistas climáticos do comando do país, nossa mensagem ao mundo tem que ser direta: são necessários investimentos em adaptação para enfrentar catástrofes que vinham até então atingindo sobretudo os mais pobres, e hoje ferem a Europa. Ao mesmo tempo, é necessária uma infraestrutura material e energética da qual novos projetos fósseis sejam definitivamente banidos.”
Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do IPCC
“A forte onda de calor que impactou a Europa e os Estados Unidos simultaneamente em julho mostra que mesmo os países desenvolvidos não estão preparados para as mudanças climáticas. Países em desenvolvimento, como o Brasil, têm que se preparar para o clima, que já mudou. Vimos em 2022 fortes enchentes na Bahia, em Minas Gerais, chuvas fortes que causaram mortes em Petrópolis e em Paraty, além de seca no Brasil, especialmente no o Rio Grande do Sul, que trouxeram fortes prejuízos para a agricultura. O Brasil e demais países precisam se adaptar ao novo clima, que já está entre nós. A mudança climática não é mais coisa do futuro, mas do presente. Prejuízos em vidas e na economia já estão ocorrendo hoje. O Brasil tem um plano nacional de adaptação climática que nunca saiu do papel. Não há interesse em proteger a vida dos mais pobres, dos mais vulneráveis. Isso tem que mudar se quisermos construir um Brasil mais justo e sustentável.”
Carlos Nobre, climatologista e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP
O que o mundo está vendo ocorrer na Europa está longe de ser o primeiro evento extremo de calor a atingir o continente. Principalmente na última década, tivemos outros episódios extremos não somente lá, mas em todo o mundo. Em 2003, França e Espanha contabilizaram mais de 18 mil mortos por uma onda extrema de calor. Em 2020, regiões do Canadá atingiram os 50°C. No início de 2022, o oeste do Rio Grande do Sul bateu temperaturas recordes de calor. Infelizmente, esses eventos extremos estão acontecendo muito antes do que as projeções feitas há algumas décadas indicavam. O último relatório do IPCC mostrou que é inequívoca a influencia humana neste cenário. Cerca de 90% dos eventos extremos registrados nos últimos anos não estariam acontecendo com a mesma frequência e intensidade se não fossem as emissões antropogênicas de gases de efeito estufa. O atual cenário mostra o enorme risco que estamos vivendo, com o planeta 1,1 a 1,2°C mais quente. Se não reduzirmos imediatamente as emissões de gases de efeito estufa e cumprirmos o Acordo de Paris, de limitar o aquecimento da terra em 1,5°C, ondas de calor como a que está acontecendo agora, além de secas extremas, chuvas extremas, inundações, incêndios da vegetação, perda de safras, entre outros, se tornarão muito comuns na Europa e no restante do planeta.
Thelma Krug, vice-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)
“A onda de calor que está sendo vivenciada na Europa não é surpresa para os cientistas. Há anos o IPCC vem indicando que as atividades humanas, incluindo a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento, estão aumentando as emissões de gases de efeito estufa, acarretando no aumento da concentração desses gases na atmosfera, que, por sua vez, resultam na mudança do clima. Com um maior aquecimento do planeta, eventos extremos como ondas de calor, fortes chuvas e ciclones tropicais se tornam mais frequentes, intensos e duradouros. Desde 1950, os extremos de calor, incluindo as ondas de calor, se tornaram mais frequentes e mais intensos na maior parte das regiões terrestres. Esses eventos seriam extremamente improváveis caso não se considere a influência humana no sistema climático (atmosfera, oceano, biosfera terrestre). Cada incremento adicional de aquecimento global resultará em contínuas mudanças na ocorrência de extremos climáticos e meteorológicos. Assim sendo, a não ser que o aquecimento seja limitado, o que implica em rápidas, profundas, generalizadas e sustentadas reduções de emissões de gases de efeito estufa, o mundo continuará a enfrentar cada vez mais eventos de secas prolongadas, inundações, dias e noites muito quentes, com consequente impacto para os sistemas natural e humano.”