• 15 de maio de 2012
  • JORNAL DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
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A lentidão na reforma agrária

A complexidade da realidade social e econômica de nosso país é fato antigo e conhecido. A lista de contradições e de surpresas que ela nos apresenta parece ser infindável. Dentre tantos aspectos, chamam a atenção os elementos associados à questão agrária. Em especial, a dinâmica da utilização da reforma agrária como instrumento de política pública, com o objetivo de reduzir o nível da profunda desigualdade que nos caracteriza há séculos. Assim, além de corrigir essa histórica injustiça para com parcelas expressivas da população, sempre marginalizadas de qualquer modelo de integração e inserção, a redistribuição de terras também permitiria aumentar a oferta de alimentos de qualidade para nossa população.

Registro vivo de nosso passado colonial e assentado nas grandes propriedades de monocultura exportadora, movida à base da mão de obra escrava, o quadro atual da nossa estrutura fundiária ainda evoluiu muito pouco, em termos de distribuição de terras e de propiciar o acesso à terra para pequenos e médios proprietários e sistemas cooperativos. A opção política que os governos recentes fizeram pelo estímulo ao agronegócio, como modelo exemplar para os que trabalham com a terra em nosso país, terminou por reforçar as desigualdades sociais e econômicas no campo.

Longa tradição de luta no campo

Ao contrário de boa parte dos países capitalistas atuais, até os dias de hoje o Brasil ainda não efetuou sua reforma agrária. Apesar de constar da pauta política há muitas décadas, a implementação de tais medidas necessita contar com uma conjuntura política favorável e um governo interessado em patrocinar tal mudança. Assim foi na década de 1960, quando o movimento no campo lutava por tais mudanças, com suas entidades, a exemplo da Contag e das Ligas Camponesas. Mas um dos principais argumentos das forças conservadoras, em sua estratégia golpista contra o governo de João Goulart, era justamente a intenção do presidente de levar a cabo tal projeto. A chegada da ditadura militar, em 1964, promoveu profunda repressão ao movimento popular e a reforma agrária só voltou a se tornar viável politicamente a partir do processo de democratização e da votação da Constituição de 1988.

Nesse novo período de lutas sociais, a grande novidade foi o surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST), que passou também a se constituir em agente social importante de reforço da luta pela reforma agrária. Apesar do Artigo 5°, Inciso 23 do nosso texto constitucional exigir a “função social” da propriedade, o fato é que a resistência das elites e das oligarquias em aceitar uma política de redistribuição de terras não se alterou em quase nada. Pelo contrário, os representantes de tais setores conservadores passaram até a se organizar de maneira mais agressiva, como foi o caso da época da União Democrática Ruralista (UDR) e atualmente por meio da bancada ruralista no Congresso Nacional. A intenção era evitar o avanço das bandeiras de apoio à reforma agrária no Parlamento e no interior da sociedade, além de barrar as medidas no âmbito da administração pública e do Poder Judiciário.

Apesar de alguns avanços institucionais, como a constituição do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do reforço dos quadros do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra), o fato é que a lentidão tem sido a marca das transformações efetivas no campo, ao longo das últimas duas décadas. Nem mesmo a mudança, tão carregada de simbolismo e esperança, proporcionada pela chegada de Lula ao poder em 2003, foi capaz de mudar o quadro desfavorável ao movimento popular. A desigualdade em favor dos grandes e poderosos manteve-se inalterada, quando não aprofundada.

Lentidão e frustração

Diversas pesquisas elaboradas por estudiosos da matéria mostram um quadro pouco animador para a primeira década do milênio. De acordo com os dados cadastrais do próprio Incra, não só o quadro de desigualdade não foi atenuado, como assistimos a um processo de concentração de terras ao longo do período 2003-2010.

Assim, as grandes propriedades representavam apenas 2% do total em 2003 e se mantêm inalteradas com tal percentual em 2010. Já os minifúndios e as pequenas áreas somados representam 90% do total das propriedades, restando 7% relativos às propriedades de porte médio. Trata-se da manutenção da política de concentração. Porém, tal tendência é ainda mais grave, caso levemos em consideração a área total e não apenas o número de propriedades. Nesse caso, veremos que, ao longo dos oito anos, a participação percentual de minifúndios, pequenos e médios cai, ao passo que apenas a área total ocupada pela grande propriedade aumenta de 52% para 56%. Ou seja, além de apenas 2% do total de propriedades já ocupar mais da metade da área total, esse índice fica ainda mais desigual entre 2003 e 2010.

A frustração com a política para o setor, levada a cabo desde então, tem sido a marca das entidades que estão na vanguarda da luta pela democratização do acesso a terra, como o MST. De acordo com levantamento efetuado pela entidade, o ano de 2011 – o primeiro do mandato da presidenta Dilma – revelou-se o mais fraco em termos de assentamento de famílias ao longo dos últimos 17 anos. Assim, caso sejam comparados os números relativos ao primeiro ano dos mandatos desde 1995, teremos o seguinte quadro: i) FHC – 43 mil famílias em 1995; ii) Lula – 36 mil famílias em 2003; iii) Dilma – 22 mil famílias em 2011.

Caso sejam analisados os dados de todo o período, percebe-se que o primeiro mandato de Lula foi mais efetivo em termos de reforma agrária. A média de assentamentos de famílias por ano obedeceu ao seguinte quadro:

FHC 1 (1995-1998) – 72 mil/ano

FHC 2 (1999-2002) – 63 mil/ano

Lula 1 (2003-2006) – 95 mil/ano

Lula 2 (2007-2010) – 58 mil/ano

Isso significa que, caso Dilma pretenda manter a média do primeiro mandato de Lula, ela terá de assentar uma média de 120 mil famílias nos próximos três anos que lhe restam. Mas a maioria dos analistas do setor considera muito difícil atingir tal meta, uma vez que o próprio MDA trabalha com a hipótese de assentar apenas 35 mil famílias até o final desse ano de 2012.

Reforma agrária deveria ser prioridade

Esse é o contexto em que o movimento do campo acaba de fechar o momento mais marcante de seu período anual de lutas, o chamado Abril Vermelho. A leitura de suas lideranças é de que pouco se avançou, apesar de haver recursos orçamentários para o MDA e para o Incra. Entre 2004 e 2012, por exemplo, as dotações do Ministério saltaram de R$ 1,5 bilhão para R$ 5 bilhões e as do Instituto de R$ 1,1 bilhão para R$ 3,2 bilhões. Já as verbas do Ministério da Agricultura, apesar de se situarem num patamar superior, cresceram apenas 30%, de R$ 7,5 bilhões para R$ 10 bilhões. Esses números permitem duas leituras. A primeira, mais evidente, é que o grande agronegócio está muito melhor dotado de verbas públicas do que a agricultura familiar e a reforma agrária. Por outro lado, permite-nos concluir também que, apesar do crescimento das verbas ao longo do período, não houve tantos avanços em termos de efetivação da reforma agrária e do estímulo à agricultura de pequena propriedade.

Além disso, é preciso estabelecer um outro olhar sobre a política de reforma agrária: ela deve ser encarada de forma ampla e integradora, para além da mera distribuição de terras. Não basta apenas reconhecer assentamentos e oferecer os títulos de propriedade fundiária aos que lutam por isso há tanto tempo. É necessário implementar políticas de assistência técnica, propostas de extensão rural, mecanismos de acesso ao crédito oficial, medidas de viabilização comercial da produção, estratégias de fornecimento de equipamentos de saúde e educação nos locais, entre tantos outros aspectos das políticas públicas. A intenção, a longo prazo, é de tornar viável o modo de viver dos camponeses no ambiente rural, com qualidade de vida e renda condizente para a atual e para as futuras gerações. Para tanto, é fundamental um modelo de integração com os demais setores sociais e de sustentabilidade em termos temporais e ambientais.

Com isso, a sociedade brasileira passará a contar com uma alternativa de vida que não seja a continuidade tresloucada e irresponsável do atual processo de migração para as metrópoles e grandes cidades. A concentração fundiária e o modelo explorador do agronegócio expulsa a mão de obra e não oferece perspectivas seguras a médio prazo, que sejam capazes de evitar a continuidade do êxodo urbano sem perspectivas. E aqui entra o papel a ser cumprido pelo Estado, na implementação da reforma agrária. Ao assegurar a fixação da população no campo, em condições de trabalhar a terra e fazer chegar seus produtos nos espaços de comercialização, o país ganha em termos de qualidade de sua alimentação e passa a oferecer uma alternativa para a atividade agrícola que não seja a mera exportação de commodities.

A escala do pequeno e do local, por outro lado, dá sua contribuição para a desconcentração de renda e pode reduzir o grau de envenenamento a que a população brasileira está submetida atualmente, em razão dos processos perversos utilizados para a produção dos alimentos. Isso porque a assistência técnica governamental permitiria oferecer alternativas de técnicas produtivas menos dependentes de fertilizantes, agrotóxicos e transgênicos, a exemplo de inúmeros casos de sucesso em outros países e mesmo em pontos de experiência-piloto de sucesso, aqui em nossa terra.

As condições para a ruptura com o atual ritmo de lentidão da reforma agrária estão dadas. Basta a vontade política em acelerar o número de famílias assentadas e coordenar de forma adequada o programa no âmbito do governo. Assim como fez recentemente com a política de juros, cabe a Dilma dar sinais claros de que aprofundar a política de democratização fundiária é prioridade de seu mandato. Aliás, o equívoco de confiar unicamente nos interesses dos grandes proprietários de terra revelou sua verdadeira face na recente aprovação de um texto vergonhoso para o Código Florestal.

O país precisa de mais gente morando no campo e produzindo alimentos. Os movimentos sociais organizados oferecem essa alternativa. A administração pública está preparada para desempenhar tal tarefa. Os recursos orçamentários existem. A quantidade de terras disponíveis é, literalmente, de perder de vista. Cada um dos mais de cinco mil municípios pode garantir uma demanda mínima de alimentos para sua rede de escolas, creches, hospitais e refeitórios públicos. A continuidade do processo de crescimento da economia, do aumento do nível de emprego e de renda são fatores a reforçar a viabilidade do modelo de agricultura familiar e cooperativa. Falta apenas um comando firme e uma orientação segura.

* Paulo Kliass é especialista em políticas públicas e gestão governamental, carreira do governo federal, e doutor em economia pela Universidade de Paris 10.

** Publicado originalmente no site Carta Maior.

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