A ‘economia verde’ será ‘verde’ o suficiente a ponto de permitir a aplicação da consulta prévia?
“Ainda predomina o viés colonialista na relação do Estado brasileiro com os povos indígenas”, constata o antropólogo Ricardo Verdum.
Foto: Jeferson Rudy.
Apesar de a Constituição Federal assegurar o direito dos povos indígenas à consulta prévia antes da construção de um empreendimento que possa gerar impacto às comunidades, este direito é desrespeitado no Brasil. Para garantir a participação dos indígenas nas decisões políticas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou a Convenção 169, a qual “trouxe uma série de inovações no trato de questões relativas aos povos indígenas e tribais no âmbito dos estados nacionais. Entre elas, o direito dos povos indígenas serem consultados em todas as decisões legislativas ou administrativas que os afetem, de maneira prévia, livre e informada, cabendo aos estados nacionais garantir as condições adequadas para que isso ocorra”, explica Ricardo Verdum à IHU On-Line em entrevista concedida por e-mail.
No Brasil, o desrespeito aos povos indígenas é recorrente. Eles não foram ouvidos em relação à transposição do Rio São Francisco, à construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, à construção da usina hidrelétrica de São Manoel, na divisa dos estados do Pará e do Mato Grosso. De acordo com Verdum, embora o Congresso Nacional tenha ratificado a Convenção 169 e, desde 2003, ela vigore como lei, “ainda predomina entre os indígenas um desconhecimento em relação ao ‘direito de consulta prévia, livre e informada’, e do que ele significa ou pode significar na prática”. Por outro lado, enfatiza, “os governos que se sucederam desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, e da entrada em vigor no país do disposto na Convenção 169, também não foram grandes entusiastas desse mecanismo”.
Ricardo Verdum é doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) e assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
A entrevista foi realizada em parceria com o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat), parceiro estratégico do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a origem do Direito de Consulta Prévia, Livre e Informada dos Povos Indígenas e qual é a inovação e essência desse mecanismo?
Ricardo Verdum – O direito dos povos indígenas à consulta prévia, livre e informada é parte do sistema internacional de promoção e proteção dos direitos humanos desde 1989. Nesse ano, por pressão de intelectuais, indigenistas, lideranças e organizações indígenas, entre outros, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), organização integrante do chamado Sistema das Nações Unidas, adotou uma nova convenção, conhecida como “Convenção 169 da OIT”. Essa convenção trouxe uma série de inovações no trato de questões relativas aos povos indígenas e tribais no âmbito dos estados nacionais. Entre elas, o direito dos povos indígenas serem consultados em todas as decisões legislativas ou administrativas que os afetem; de maneira prévia, livre e informada, cabendo aos estados nacionais garantir as condições adequadas para que isso ocorra. Isso está estabelecido nos Artigos 6º, 7º e 15º.
A Convenção 169 é hoje o único instrumento jurídico internacional sobre os direitos humanos dos povos indígenas. A partir dela é reconhecido o direito dos povos indígenas à autodeterminação. Isso tem implicações legislativas e administrativas, como também deveria ter implicações institucionais e práticas na relação do Estado com as comunidades locais. Ela assegura a todos os povos indígenas o direito de manifestar livremente sua vontade e é uma das formas principais de garantir todos os direitos dos povos indígenas. Além disso, deverão ser-lhes garantidas as condições para mover ações legais, individualmente ou por meio de suas formas próprias de representação coletiva, a fim de garantir a proteção efetiva de tais direitos.
IHU On-Line – O Brasil é signatário desse direito? Ele tem poder de lei?
Ricardo Verdum – Sim. O Congresso Nacional brasileiro ratificou a Convenção 169, em 20 de junho de 2002, por meio do Decreto Legislativo n. 143. Um ano depois, em 25 de julho de 2003, ela passou a vigorar no país como qualquer outra lei nacional. Ou seja, tem poder de lei. Ela deve ser aplicada pelo Estado nacional, assim como respeitada pelo conjunto da sociedade brasileira. É o movimento conhecido como incorporação do direito internacional ao direito interno. Além disso, concluindo o rito de incorporação ao sistema de direito brasileiro, em 19 de abril de 2004, ela foi promulgada pelo presidente Lula, por intermédio do Decreto n. 5051. O texto do Decreto é bastante explícito quando diz que a Convenção “será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém”.
IHU On-Line – O Brasil vem desrespeitando sistematicamente esse direito? Quais são os casos mais flagrantes?
Ricardo Verdum – Embora exista esse conjunto de ferramentas legais vigentes no país, sua aplicação de forma adequada ainda é um desafio. Essa situação foi o que moveu, por exemplo, um conjunto de organizações, entidades e instituições a se reunir, em Brasília, de 9 a 12 de outubro passado, para debater o conteúdo e o alcance do Direito de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) dos povos indígenas. Esse debate gerou um documento na forma de uma proposta preliminar de diretrizes para regulamentação e aplicação desse direito no país.
O exemplo mais atual e flagrante da não aplicação do direito à Consulta Prévia é o caso do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará. Isso também esteve entre as motivações da realização do seminário “Hidrelétrica de Belo Monte e a Questão Indígena” ocorrido na Universidade de Brasília, no dia 7 de fevereiro passado. Apesar de estar assegurado na Constituição, o direito de os povos indígenas afetados por Belo Monte serem consultados adequadamente antes da realização da obra está em discussão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Mas há também outros casos de desrespeito a esse direito, como o caso dos povos indígenas afetados pela obra de transposição do rio São Francisco. Recentemente, os kayabi e munduruku mantiveram reféns sete funcionários da Funai e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Eles reclamavam da falta de diálogo do governo com os povos indígenas afetados pela usina hidrelétrica de São Manoel, na divisa dos estados do Pará e do Mato Grosso. Exigiam um procedimento de consulta específico, respeitoso, em conformidade com os direitos assegurados aos povos indígenas no país.
Esse desrespeito também ocorre em outras regiões do país, não só na Amazônia. Na região Sul, no estado do Paraná, por exemplo, há o caso da Usina Hidrelétrica Mauá, localizada no rio Tibagi. Lá ocorreu uma dupla irregularidade: primeiro, na definição da área de influência do projeto – foi parcialmente considerado o impacto que o barramento do rio e a instalação da hidrelétrica causariam ao território e as condições de vida das comunidades kaingang e guarani que vivem na bacia desse rio. Além disso, as comunidades reclamam que não foram consultadas conforme prescreve o Decreto n. 5051, de 2004, que incorpora o estabelecido na 169 na normativa nacional.
A ação dos guarani da Aldeia Estiva, em Viamão, no Rio Grande do Sul, de “deter” por algumas horas o presidente da Funai e sua comitiva, parece ser também um sintoma dessa vontade de que as leis sejam cumpridas, de que seus territórios sejam assegurados pelo Estado brasileiroe de que sejam consultados pelo governo na definição das políticas.
IHU On-Line – No caso de Belo Monte, o Brasil foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA) em função da ausência da Consulta Prévia às comunidades indígenas?
Ricardo Verdum – Sim. Esse foi um dos principais “puxões de orelha” da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA ao Estado brasileiro, no que diz respeito ao caso Belo Monte. Além de não realizar a “consulta prévia”, os estudos e informações oficiais disponíveis não garantem que será respeitado o conjunto dos direitos dos povos indígenas assegurados pela legislação nacional e internacional.
IHU On-Line – Há casos semelhantes na América Latina?
Ricardo Verdum – Recentemente, ocorreram na Bolívia as manifestações dos indígenas que vivem no Território Indígena e no Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis). Eles reclamaram de não terem sido consultados antes de definir que seria construída uma estrada no interior da área indígena. No final do ano passado, o Centro de Estudios Juridicos e Investigación Social, sediado na cidade de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, lançou uma interessante avaliação de experiências de aplicação da “consulta prévia” – dispositivo previsto na Constituição daquele país – junto aos povos indígenas originários e campesinos. Em 2008-2009 foram recorrentes os conflitos na região de Bagua, no Peru, em decorrência da intenção do governo do presidente Alan García de entregar os territórios indígenas a empresas extrativistas do setor de petróleo e gás.
Ainda no Peru, um dos primeiros atos do atual presidente, Ollanta Humala, foi cancelar a concessão que a empresa brasileira OAS tinha para construir a hidrelétrica de Inambari. Isso aconteceu porque as comunidades indígenas não haviam sido consultadas a respeito da obra.
Há também o caso dos u’wa e a empresa Occidental Petroleum. Amparados no marco jurídico vigente na Colômbia, os u’wa questionaram a licença concedida pelo governo para que a petroleira explorasse em área adjacente ao seu território, sem que às comunidades indígenas fosse garantido o direito fundamental de consulta prévia. Ao final, a Corte Constitucional daquele país concluiu que o que havia sido realizado era, de fato, um processo de informação à comunidade, mas não de consulta, ordenando que o Executivo a fizesse com os u’wa.
IHU On-Line – Como funcionaria na prática o exercício e o respeito a esse direito?
Ricardo Verdum – Essa é uma questão complexa e de difícil resposta. O que posso te responder baseia-se no esforço realizado no mencionado seminário-oficina dos dias 9 e 12 de outubro passado. No encontro foi formulado e sugerido um conjunto de diretrizes e princípios que, segundo nosso entendimento, deveriam fundamentar a “Consulta Prévia” aos povos indígenas.
Entre as recomendações está a de que a “Consulta Prévia, Livre e Informada” deveria ser entendida pelo governo como um processo e não como um evento. Se assim fosse, ela não se confundiria, portanto, com os chamados “espaços de participação cidadã” criados pelo Estado nos diferentes níveis de governo. Sua regulamentação deveria ser feita por meio de um processo amplo de participação indígena, segundo regras e procedimentos previamente acordados com os próprios povos indígenas e suas organizações representativas. Na medida em que os sujeitos de direito de consulta são os povos indígenas diretamente afetados pela medida administrativa ou legislativa, na preparação e na realização do processo da Consulta, a Fundação Nacional do Índio (Funai) não pode tomar decisões em nome dos povos indígenas.
O “Direito de Consulta Prévia” se aplicaria a todas aquelas decisões administrativas e legislativas, de níveis federal, estadual e municipal, que afetem direitos coletivos dos povos indígenas. Nos casos em que não haja acordo, o governo deverá incorporar na motivação da decisão as razões técnicas e políticas pelas quais não há acordo com os povos indígenas.
IHU On-Line – Por que no Brasil a sensibilidade às demandas indígenas ainda é baixa?
Ricardo Verdum – Apesar de ter havido avanços políticos importantes nas duas últimas décadas, ainda predomina o viés colonialista na relação do Estado brasileiro com os povos indígenas, incluídos os seus territórios e os recursos naturais que neles existem. Com uma população proporcionalmente pequena em relação à população total do país, e que ao longo dos tempos vem enfrentando diferentes modalidades de colonialismo interno, com um baixíssimo poder de influir nas decisões centrais da política nacional, efetivar algum direito aos indígenas é algo conquistado com muito esforço.
IHU On-Line – Os povos indígenas estão se apropriando desse mecanismo ou ainda há desconhecimento entre eles?
Ricardo Verdum – Embora se fale na Convenção 169 com certa frequência, ainda predomina entre os indígenas um desconhecimento em relação ao “Direito de Consulta Prévia, Livre e Informada” e do que ele significa ou pode significar na prática. De outro lado, os governos que se sucederam desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, e da entrada em vigor no país do disposto na Convenção 169, também não foram grandes entusiastas desse mecanismo. Ao contrário, viam e veem aí uma dificuldade a mais para dispor livremente das terras e recursos naturais, colocando-as à disposição dos interesses econômicos e políticos das elites que direcionam a ação do Estado nacional brasileiro.
IHU On-Line – O “Direito de Consulta Prévia, Livre e Informada dos Povos Indígenas” não pode se transformar em um obstáculo ao modelo desenvolvimentista baseado em grandes projetos que têm lugar principalmente na região da Amazônia Legal?
Ricardo Verdum – Tenho a impressão que sim. Basta ver a resistência que há para que seja adotado. Resistência que vem exatamente dos setores da sociedade que têm imposto e implementado esse modelo há gerações, que são corresponsáveis pelo estado de degradação ambiental em que se encontram várias regiões do país, da acelerada erosão biológica que vemos ocorrer, do estado de contaminação química de alimentos que consumimos diariamente, das mudanças no clima já em curso, decorrência das emissões de gases de efeito estufa etc. Agora, estamos vendo nascer a chamada “economia verde”. A dúvida é saber se ela será “verde” o suficiente a ponto de permitir a aplicação da “consulta prévia”.