As projeções sobre o futuro da água
As projeções sobre o futuro da água e suas implicações para a indústria.
Há uma crescente preocupação com a disponibilidade da água nas próximas décadas. A apreensão tem sentido, já que grande parcela da população mundial ainda vive sem acesso à água potável e ao saneamento básico, situação que tende a piorar com o aumento populacional esperado. Entre as soluções propostas está a da precificação dos recursos hídricos, o que poderia implicar em custos significativos para diversos setores da indústria. Mas será esta solução puramente econômica é a definitiva?
Água: um recurso cada vez mais escasso
As Nações Unidas definiram 2013 como o ano mundial da cooperação pela água. A preocupação com o tema não é de forma alguma infundada. De acordo com dados da própria ONU, pelo menos 780 milhões de pessoas vivem sem acesso à água potável, enquanto 2,5 bilhões não possuem saneamento básico adequado.
As projeções para o ano de 2050 também são alarmantes. Enquanto a população mundial vai saltar dos atuais 7 bilhões para 9 bilhões, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que o aumento na utilização de água será da magnitude de 55%. Dessas pessoas, em torno de 40% viverão em regiões de severo estresse hídrico. Embora espera-se que um dos Objetivos do Milênio seja alcançado, reduzindo o número de pessoas sem acesso à água mais do que pela metade – de 780 milhões para 240 milhões, outro muito provavelmente não será. Em 2050, ainda serão 1,4 bilhão de pessoas sem saneamento básico.
Segundo informações da OCDE, as principais atividades responsáveis pela utilização dos recursos hídricos são a agricultura e a produção de alimentos (70%), seguidas pela indústria (20%), o que inclui a geração de energia. Os 10% restantes são gastos através do uso doméstico. O aumento populacional gerará uma pressão considerável na produção de alimentos e espera-se um crescimento de demanda na casa de 90% até 2050. A produção industrial não deve ficar muito atrás e só a geração de energia através da hidroeletricidade e outras fontes renováveis deve subir em torno de 60%.
A água doce é um dos ativos ambientais de valor inestimável para a vida humana e já a utilizamos em um nível superior ao que a natureza consegue repor. Apesar de nosso planeta ser, em grande parte, coberto por água, 97% desta está na forma de água salgada nos oceanos e apenas 2,5% é potável. Deste menor percentual, cerca de dois terços existem na forma de geleiras, o que nos deixa com menos de 1% de toda a água existente no globo disponível para consumo. Para piorar a situação, a maior parte dessa água potável se apresenta disponível em momentos inoportunos: monções e alagamentos. Além disso, 20% está localizada em locais muito remotos, longe do nosso alcance.
O resultado final é que apenas 0,2% dos recursos hídricos mundiais está efetivamente em uso, distribuído de modo bastante desigual, e um valor ainda menor, 0,13%, é renovável – precipitação em direção ao solo e posterior evaporação. A utilização a níveis atuais é insustentável e as previsões futuras, com aumento no consumo, tornam o cenário ainda mais preocupante. Para garantir a disponibilidade da água serão necessários mecanismos de controle e o desenvolvimento de tecnologias para aumento de eficiência.
A precificação da água no Brasil
Entre os mecanismos desenvolvidos para promover o uso eficiente dos recursos hídricos, talvez seja o da precificação aquele que ganhou maior popularidade. Muitos especialistas assumem que a determinação de um preço justo para a água é etapa necessária para garantir o consumo racional desse ativo ambiental. A ideia reside na teoria de que, havendo um preço, o usuário tem maior noção do valor do recurso e agirá de maneira mais prudente, aumentando sua eficiência e produtividade.
No Brasil, a água, de maneira geral, é tratada como bem público. De qualquer maneira, indústrias, agricultores, empresas de saneamento e qualquer pessoa que utilize a água proveniente de rios, lençóis freáticos e lagos precisa de uma outorga da Agência Nacional de Águas (ANA) para garantir o direito de uso. É através da gerência de outorga que, segundo a ANA, a agência realiza o controle qualitativo e quantitativo do uso da água.
Entretanto, já existem casos de cobranças pela utilização de recursos hídricos no país. De acordo com a Agência Nacional de Águas, o recolhimento está em vigor em alguns rios sob domínio da União e em rios, lagos e baías de responsabilidade estadual em Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e no Distrito Federal. O método utilizado é o volumétrico: o usuário paga de acordo com a quantidade utilizada, existindo um valor determinado em R$/m³.
Considerando uma universalização dessa cobrança em território nacional, o que parece ser uma tendência para os próximos anos, é possível a realização de alguns cálculos exploratórios para se determinar a magnitude do impacto dessa precificação no custo operacional e no valor de mercado de empresas de determinados setores:
Para a elaboração das contas, foram consideradas como variáveis: o volume médio de água utilizado pelas empresas nos últimos anos; o preço da água, baseado nos valores já cobrados no país e de acordo com a região de atuação da companhia; as porcentagens de água captada e reutilizada; e o horizonte temporal para a cobrança efetiva pelo uso de recursos hídricos, variando conforme o nível de estresse hídrico do local onde as plantas industriais se encontram. Não foi levado em conta a possibilidade de contaminação de nascentes e seu impacto reputacional. O resultado final foi dividido pelo valor de mercado das empresas (número de ações x valor das ações).
Conforme pode-se observar pelo gráfico, o impacto da precificação da água no market cap das empresas dos setores de alimentos, bebidas, energia, mineração, papel e celulose e siderurgia do IBOVESPA, que são intensivos no uso do recurso, varia entre 0,1% e 5,3%.
As diferenças intrassetoriais se explicam, basicamente, por uma melhor gestão hídrica e investimento em tecnologias para a redução do consumo e reaproveitamento da água. O caso mais expressivo é na indústria de alimentos processados, onde a empresa menos impactada, nas condições atuais, poderia ter seu valor reduzido em 0,6% após a imposição de um valor para água, enquanto que a que sofreu abalo teve seu market cap reduzido em 5,3%.
O caso do setor de bebidas é atípico. Embora seja uma indústria que utilize consideravelmente os recursos hídricos, a empresa listada no IBOVESPA é bastante eficiente tanto no uso quanto no reuso desse ativo. E, principalmente, o seu valor de mercado é tão alto que minora a extensão do impacto da precificação.
De qualquer modo, o preço da água pode ter um custo significativo para as corporações desses e de outros setores, aumentando custos operacionais, reduzindo margens e, consequentemente, afetando o seu valor de mercado. A eficiência na utilização dos recursos hídricos e investimentos em pesquisa e desenvolvimento podem ser fatores de diferenciação consideráveis em um futuro próximo.
Precificação e mercado de água: solução inteligente ou saída mais fácil?
Como dito anteriormente, a determinação de um preço para a água se baseia no racional de que, ao se determinar um valor para esse recurso, ele seria utilizado com maior precaução, aumentando a eficiência no consumo, melhorando sua alocação e reduzindo seu uso. Contudo, ao se colocar o preço como único determinante da viabilidade de exploração de um ativo natural, todas as questões socioambientais são subjugadas pelas considerações econômicas. Dessa maneira, os valores estéticos, éticos e até mesmo, em alguns casos, espirituais dos rios, lagos e outras fontes são deixados de lado.
Em questões práticas de mercado, a criação do sistema de preços para a água e um subsequente mercado pode ter outros efeitos perniciosos. Nesse cenário, regiões abundantes em recursos hídricos e, por esse motivo, historicamente desenvolvidas, possuirão maior acesso à água a um preço mais baixo do que regiões de estresse hídrico, exatamente as que precisariam de água em valor mais baixo para se desenvolver. Ao mesmo tempo, empresas que acumularam maior capital financeiro e tecnológico, talvez até mesmo através da exploração abusiva de recursos naturais, possuirão enorme vantagem competitiva sobre companhias em desenvolvimento, seja na venda dos “créditos” para uso adicional de certos ativos quanto na obtenção desses ativos.
É muito improvável que lançando mão apenas de artifícios da mesma natureza daqueles que levaram à contínua depredação dos recursos naturais é que o problema do uso excessivo desses recursos seja resolvido. Faz-se necessária uma profunda revisão da questão do hiperconsumo e da ideia de desenvolvimento ilimitado, não condizente com um planeta de recursos finitos, o que envolve uma mudança de cultura e educação importantes. Além disso, é vital a criação de instrumentos que tragam considerações éticas, morais e estéticas para a determinação dos uso dos recursos naturais, incluindo a imposição de limites, definidos após extensa análise dos impactos em comunidades locais, fauna e flora.
A solução deve ir além dos simples incentivos econômicos que têm se provado, em sua maioria, insuficientes.
* Fred Seifert é economista pela UFRJ, consultor da SITAWI – Finanças do Bem desde agosto de 2011 e vencedor do Prêmio Itaú de Finanças Sustentáveis 2012 (fseifert@sitawi.net | www.sitawi.net).