Há expectativas de que decisão possa permitir boa utilização do instrumento, mas organizações da sociedade civil apontam desconfianças
“A melhor notícia é que ele nasceu. Ele é torto, cheio de defeitos, mas nasceu”, explicou o físico Shigueo Watanabe Jr., especialista em mudanças climáticas do Instituto Talanoa. “Agora vamos trabalhar para funcionar direito. Mas pelo menos existe essa possibilidade.”
Watanabe referia-se à aprovação, ocorrida na semana passada, dos artigos 6.2 e 6.4 do Acordo de Paris, que continuavam com pontos em suspenso nove anos após a publicação do texto inicial. A aprovação, no último dia da frustrante COP 29, em Baku, dá ao mundo a possibilidade de implementar, com regras mais claras, um mercado internacional de compra e venda de crédito de carbono. Hoje, vários países, como é o caso do Brasil, contam apenas com um mercado voluntário, sem regulação.
O artigo 6.2 regula a troca de carbono entre países. Já o 6.4 cria um mecanismo global para as transações, centrado na ONU, que vai gerar os créditos para serem comercializados pelas instituições privadas e públicas. Numa alusão ao futebol, é como se a Fifa tivesse estabelecido as fundações do jogo – mas falta construir o estádio e escalar os jogadores. “Agora o trabalho é mais técnico do que político”, explicou Watanabe. “Os debates, daqui em diante, serão sobre metodologia.”
De partida, ficou estabelecido que as transações entre países terão que ser supervisionadas por um órgão da ONU. “Os países vão precisar registrar as transações num sistema. Vai haver monitoramento e revisão técnica, para evitar que haja acordos feitos ao bel prazer.” Watanabe citou um exemplo prático: “Está havendo um acordo dos Emirados Árabes para proteger 80% das florestas do Gabão, algo bastante complicado de ser implementado com sucesso.Ter a ONU na supervisão é uma medida importante para evitar greenwashing.”
A ONU não terá poder direto de punição, mas poderá reconhecer ou não uma transação, a depender dos critérios adotados pelos países. “E caso haja rejeição, esses países não poderão descontar os valores na hora de apresentarem suas NDCs”, disse Watanabe, referindo-se ao documento com as metas de emissão de gases de efeito de estufa apresentado por cada país, como estipulado pelo Acordo de Paris.
Coordenador do Programa de Política e Economia Ambiental do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), o professor Guarany Osório citou um exemplo hipotético para ilustrar o caso: “Vamos supor que a Suíça precise reduzir emissões para cumprir sua meta, e ela opte por utilizar uma porção da redução de emissões realizadas pelo Peru. O Peru, então, não vai poder usar essa porção de redução na própria meta. O maior desafio vai ser conectar as coisas. Os países vão precisar ter contabilidades climáticas confiáveis, com regras claras para garantir transparência e integridade ambiental, para só assim poder vender os excedentes.”
Osório lembra que existem outros sistemas de mercados de carbono regulados no nível nacional e subnacional, mais especificamente, 75 jurisdições com mercados de carbono regulados no planeta. São países – como a Colômbia -, estados – como a Califórnia -, cidades – como Xangai -, ou regiões – como a União Europeia. “Não dá pra esperar o mercado de carbono global ficar totalmente operacionalizado para só então fazer as coisas.” (O Brasil aprovou um texto sobre a regulação, no Congresso, agora em novembro. O texto ainda precisa ser sancionado pelo presidente da República.)
Integridade ambiental
Menos confiantes, organizações da sociedade civil reclamam que o mecanismo aprovado na COP não parece ser suficientemente seguro. Diretor de comunicação do Carbon Market Watch, o jornalista Khaled Diab alertou: “Sem um prazo para tomar medidas nem sanções claras, os países têm poucos incentivos para não burlar o sistema.”
An Lambrechts, especialista em política de biodiversidade do Greenpeace Internacional, foi mais enfática, chamando a solução de “fraude climática”, por criar a possibilidade de que países e empresas continuem poluindo, contanto que possam pagar por isso: “O mecanismo apenas fornecerá uma tábua de salvação para a poluente indústria de combustíveis fósseis, permitindo-lhe compensar as emissões. (…) Os poluidores deveriam ser obrigados a pagar para limpar a bagunça que causaram, mas em vez disso estão ganhando um cartão para sair da prisão.”
Em entrevista coletiva realizada no sábado último, em Baku, a secretária nacional de mudança do clima do MMA, Ana Toni, explicou que o mercado de carbono era algo ansiado tanto por países desenvolvidos quanto por países em desenvolvimento, mas frisou que a implementação só fará sentido se mantiver a “integridade ambiental” – ou seja, se resultar, de fato, numa diminuição da emissão de gases de efeito estufa. Guarany Osósio, da FGV, tem a mesma opinião: “O mercado de carbono é uma peça da engrenagem, para ajudar a financiar a transição, mas não vai resolver problemas básicos, como questões fundiárias. Integridade ambiental tem que ser uma palavra central do mecanismo.”
Shigueo Watanabe Jr. diz que a aprovação dos artigos 6.2 e 6.4 pode ajudar a guiar as metodologias que vão ser adotadas no mercado de carbono recém aprovado pelo Congresso Nacional. “A nossa matriz elétrica é quase toda renovável, mas a matriz energética é mais de 50% petróleo e gás. A gente tem uma baita lição de casa para fazer nessas áreas, e também na pecuária.” Num cenário otimista, o mercado pode resultar, no futuro, em custos cada vez maiores para quem continuar emitindo carbono em demasia. “Quero que chegue um dia em que o uso de uma caldeira a gás comece a dar um prejuízo louco.”