Grupo analisa impacto agregado de centenas de empreendimentos planejados e vê risco até para ecossistemas do litoral amazônico; bacias do Madeira e do Tapajós são as mais frágeis
Em toda a Amazônia, as sub-bacias menos vulneráveis são as do Negro, do Javari e do Jutaí, no Amazonas – em grande parte protegidas por terras indígenas e longe do olho gordo da Eletronorte. As mais vulneráveis são as do Madeira – o quarto maior rio do mundo, responsável por 50% dos sedimentos transportados pelo Amazonas para o oceano –, do Tapajós e do Marañon.
LAMA PRIMORDIAL
No caso do Madeira e do Marañon, um dos efeitos deletérios do grande número de usinas é algo que à primeira vista pareceria uma boa coisa: elas tendem a deixar a água barrenta dos rios amazônicos mais clarinha.
Na realidade, isso é um desastre para a floresta. Num sentido nada figurado, a lama transportada do Marañon e do Madeira para o Solimões e o Amazonas é grande parte da receita do que torna a Amazônia o que ela é.
“A lama tem um papel fundamental”, diz Latrubesse. No período das cheias, ela deposita nutrientes nas planícies aluviais, o que mantém a biodiversidade. Os sedimentos também têm um papel na constante mudança de curso dos rios, criando meandros abandonados, lagos e ilhas ao longo dos anos. É nesses ambientes de populações de animais e plantas isoladas pelo rio que surgem novas espécies.
“As pessoas tendem a pensar no rio como um mero canal de água, mas na verdade ele é uma coisa viva”, diz o cientista argentino. “Se você corta os sedimentos, corta a diversidade dos ecossistemas.”
Foi exatamente isso o que aconteceu no rio Paraná, no oeste paulista, que se transformou numa cascata de hidrelétricas, e no rio Yangtzé, na China, que abriga a maior hidrelétrica do mundo, a de Três Gargantas. O rio perdeu 70% de seu transporte de sedimentos, numa tragédia ambiental que os chineses agora buscam reverter.
LICENCIAMENTO
O artigo propõe que os nove países da América do Sul que dividem a bacia amazônica desenvolvam um sistema multinacional de avaliação de projetos de hidrelétricas, que leve em conta impactos que vão além da área de influência de cada empreendimento.
A própria necessidade de novas usinas deve ser repensada, segundo os autores: eles não falam em Lava Jato, mas lembram que o custo dessas obras é na maioria dos casos pelo menos duas vezes maior do que a previsão inicial. E afirmam que, devido à crise econômica que reduziu a demanda por energia no Brasil, há espaço para essa reavaliação – e, eventualmente, para preencher a demanda com fontes renováveis, que se expandem rapidamente no mundo e despencam de preço.
O sistema político brasileiro, porém, caminha neste momento no sentido oposto: vários projetos em discussão no Congresso buscam flexibilizar, enfraquecer ou simplesmente extinguir o licenciamento ambiental, facilitando a instalação de hidrelétricas na Amazônia.
Um único projeto de lei de licenciamento, que o Ministério do Meio Ambiente vem há um ano tentando emplacar no Congresso, busca estabelecer algo que dialoga com as recomendações dos cientistas: ele cria a figura da avaliação ambiental estratégica, na qual o impacto de políticas públicas sobre uma região é analisado antes que se decida fazer empreendimentos ali. “O foco passa a ser de desenvolvimento regional, caminhando para empreendimentos que, no conjunto, são mais viáveis do ponto de vista socioambiental”, disse a presidente do Ibama, Suely Araújo. Uma das principais defensoras da avaliação ambiental estratégica, Araújo arquivou, em 2016, o licenciamento da megausina de São Luiz do Tapajós. O Ministério de Minas e Energia, porém, resiste a dar a obra como morta.
O projeto do MMA concorre com outro, da bancada ruralista e da indústria, que visa tirar qualquer critério de rigor no licenciamento baseado na geografia (ou seja, empreendimentos na Amazônia teriam, a priori, maior rigor na análise) e deixar que Estados e municípios definam tudo.
Mas há outras propostas circulando no Parlamento. Uma delas, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), quer criar um licenciamento “a jato” para grandes obras. Outra, do senador cassado Delcídio do Amaral (PT-MS), recém-aprovada numa comissão do Senado, busca criar um licenciamento especial e mais expedito só para hidrelétricas. Uma terceira, do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), vai além: quer emendar a Constituição para extinguir o licenciamento ambiental. Ponto.
“No planejamento das hidrelétricas na Amazônia, usamos a mesma localização das obras proposta pelo regime militar”, disse Latrubesse. “Não se trata de ser contra ou a favor de hidrelétricas. O problema é que a maneira como foi feito foi grotesca.”
O OC procurou a Empresa de Planejamento Energético, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, para comentar o estudo. Não obteve resposta até o fechamento deste texto.