• 03 de novembro de 2017
  • JORNAL DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Indígenas da Amazônia pedem demarcação antes da ferrovia

Cada dia aumenta mais a preocupação das populações indígenas que vivem na Amazônia por causa da ferrovia que vai ligar os Oceanos Pacífico e Atlântico. Com cerca de cinco mil quilômetros de extensão, o corredor ferroviário patrocinado por empresas chinesas vai atravessar Peru, Bolívia e Brasil barateando o escoamento de produtos via Pacífico. Ao mesmo tempo, no entanto, atravessando as mais remotas comunidades indígenas.



“Além do problema que já temos de extração de madeira e mineração, ambos ilegais, a ferrovia vai trazer outros problemas como a construção de estradas que vão cruzar ao meio as reservas onde habitam povos indígenas em isolamento”, disse ao Diálogo Chino Julio Cusurichi, presidente da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (FENAMAD), do Peru.



Para evitar que sejam pegas de surpresa, as comunidades indígenas peruanas estão correndo contra o tempo para tentar demarcar seus territórios e assegurar a titulação das terras onde seus ancestrais viveram por gerações. Esta seria uma forma de se proteger contra possíveis impactos causados por grandes obras de infraestrutura. “Hoje ainda faltam uns 20% para serem demarcados”, explicou.



Da etnia Shipibo, a liderança indígena esteve na última semana em Estocolmo para falar em uma conferência sobre a experiência da região peruana de Madre de Dios, onde se conseguiu a demarcação de vários territórios de sete povos indígenas distribuídos em 37 comunidades.



Em 2002, Cusurichi ajudou na criação de uma reserva de 7.600 quilômetros quadrados para abrigar os povos indígenas em isolamento voluntário. Cinco anos depois, ele recebeu o prêmio Goldman Prize de meio ambiente – que homenageia todos os anos ativistas de direitos humanos e ambientais.



Antes da ferrovia, a rodovia



Em 2000, durante a Cúpula dos Presidentes da América do Sul, foi assinado um acordo para integrar as malhas rodoviárias do Peru, Bolívia e Brasil. A chamada Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana (IIRSA) foi um rotundo fracasso. Segundo dados de Promperú, agência de promoção à exportação peruana, em 2015, o comércio entre Peru e Brasil cresceu apenas US$ 2,9 milhões. Os mais de US$ 2 bilhões investidos para conectar a malha rodoviária dos dois países não contribuíram para a diversificação dos produtos e o comércio continuou incipiente.



Em setembro deste ano, os presidentes peruano e boliviano, Pedro Pablo Kuczynski e Evo Morales, ratificaram na cidade peruana de Arequipa o compromisso com o trem transcontinental. E, mais uma vez, foi repetido o discurso de unir o porto de Santos, no Brasil, ao peruano de Ilo, passando pela Bolívia, garantindo assim uma saída brasileira para o Pacífico. A ferrovia pode diminuir em até 25 dias o transporte comercial entre Brasil e China.



A construção da rodovia resultou em uma “má experiência” para a população indígena peruana. Segundo Cusurichi, houve a proliferação da extração ilegal tanto de minerais como de madeira, o que em sua opinião, tem causado cada vez mais danos ambientais e afetado as condições de vida dos povos indígenas. Além disso, o movimento na estrada abriu caminho para o narcotráfico.



Em busca de aliados



Na tentativa de assegurar o direito legal às suas terras, Cusurichi está buscando aliados, mesmo tendo dificuldades de estabelecer diálogo com autoridades ministeriais peruanas. Uma de suas conquistas foi a articulação com servidores do Ministério da Cultura para promover ações conjuntas de proteção aos povos em isolamento voluntário, que vivem numa reserva de 829 mil hectares.



Mais da metade do território peruano é composta por florestas, sendo grande parte ocupada por povos indígenas. Garantir o acesso às terras de usufruto comunitário na Amazônia peruana ajudaria a reduzir o desmatamento e as emissões de gases de efeito estufa, defendem organizações como a Rights and Resources Initiative (RRI).



Muitas das comunidades indígenas em Madre de Dios vivem sob a insegurança jurídica de seus territórios. Recentemente, essas comunidades integraram um projeto piloto de apoio aos indígenas no mundo com o objetivo de obterem o reconhecimento de suas terras. Sob o nome em inglês de International Land and Forest Tenure Facility, que foi lançado neste último dia 3 de outubro na Suécia, os povos de Madre de Dios conseguiram apoio financeiro, técnico e jurídico para reclamar o direito às suas terras.



Este fundo é de uma instituição constituída com financiamento da Fundação Ford e das agências sueca e norueguesa de cooperação para o desenvolvimento. O objetivo é ampliar o reconhecimento dos direitos coletivos da terra como forma de reduzir conflitos, promover os direitos humanos e ajudar a proteger o meio ambiente.



A meta é investir cerca de US$ 10 milhões por ano, na próxima década, em projetos que visem garantir a titulação de terras comunais e de povos nativos, correspondendo a cerca de 40 milhões de hectares.



Os povos indígenas da Amazônia peruana integraram um conjunto de seis projetos pilotos. Os demais são na Indonésia, Mali, Camarões, Libéria e Panamá, que juntos somam 1,78 milhões de hectares.



O sucesso na demarcação



Segundo Silvana Baldovino, diretora da Sociedade Peruana de Direito Ambiental (SPDA), quem trabalhou em conjunto com a FENAMAD, ainda é preciso resolver problemas conjunturais e conflitos na busca pela titulação da terra.



“Todos os projetos em Madre de Dios devem ser analisados com muito cuidado por causa da existência dos povos em isolamento. Qualquer contato pode acarretar no desparecimento de uma etnia”, disse ao Diálogo Chino.



Atualmente, há muito interesse em explorar os recursos naturais no Peru, comentou Baldovino. “A política nacional é de promoção de investimento e, com isso, alguns padrões ambientais reduziram. Madre de Dios é rica em ouro e em madeira. Há uma avalanche de mineração promovida pela rodovia transcontinental que mobilizou muitas pessoas a invadir diversas áreas”, disse com preocupação ao indicar que o movimento econômico que se esperava com a rodovia não alcançou um terço do previsto.



“Já a entrada de atividades ilegais, desmatamento e perda de recursos foi muito mais do que se pensou. Os impactos da estrada foram muito fortes”, afirmou demonstrando preocupação com o projeto da ferrovia.



O apoio que a organização indígena recebeu do ‘Tenure Facility’ ajudou a geo-referenciar 112 mil hectares em Madre de Dios, além de apoio técnico e jurídico. Três das etnias conseguiram obter a sua demarcação, correspondendo a 60 mil hectares. A região tem uma rica diversidade étnica com conhecimentos tradicionais e culturais. “Por isso, é importante consolidar seus direitos, além de ser uma dívida histórica”, destacou a advogada.



O fato de não terem a titulação de suas terras, faz com que seja muito fácil que corporações e grandes projetos expulsem os indígenas de suas áreas. “De repente, você vê um caminhão destruindo o lar onde você viveu por gerações. Muitos indígenas passam por isso por não terem um documento que comprove o título”, comentou Nonette Royo, diretora do recém-criado ‘Tenure Facility’.



Hoje, o mundo inteiro está “de olho” na floresta Amazônica, disse ao demonstrar preocupação com interesses comerciais e projetos de infraestrutura. “Espero que os povos indígenas se fortaleçam para enfrentar estes desafios. Nós queremos apoiá-los para que eles consigam adquirir o título e, com isso, possam dialogar e negociar”, ressaltou.


Empresas contempladas