Foram tantas as tragédias dos últimos dias – o paredão de balsas de garimpo no rio Madeira, a aprovação da PEC do Calote, a chancela do Senado ao terrivelmente fascista André Mendonça para o STF e o tombo no PIB e a tentativa de aliados do regime de criar uma Gestapo para Bolsonaro – que o país não prestou atenção ao apocalipse que se desenrola neste momento entre os índios parakanãs, no sul do Pará. Num acordo “com Supremo, com tudo”, patrocinado pela Funai e com cooptação de lideranças, a Terra Indígena Apyterewa poderá ser reduzida pela metade, para premiar grileiros que a invadiram.
Seria a primeira vez que uma terra indígena homologada é desafetada no país nessas condições. Um precedente perigosíssimo para dezenas de outros territórios pressionados Brasil afora e um sinal de que Jair Bolsonaro está cumprindo na íntegra sua promessa de campanha de “não demarcar nenhum centímetro” de terras indígenas e “rever as terras já demarcadas”.
A retirada dos invasores da Apyterewa era uma das condicionantes do licenciamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, feito no governo de Dilma Rousseff. Ela não apenas não aconteceu como os indígenas agora podem perder seu território, num acordo que sinaliza aos grileiros que toda invasão será premiada. Além da tragédia para a etnia, aumentarão as emissões de carbono e cairá mais ainda a possibilidade de controlar o desmatamento em 2022.
APOCALIPSE PARAKANÃ
Em acordo “com Supremo, com tudo” apoiado pela Funai, etnia do Pará perde metade de seu território para grileiros.Além de não demarcar “um centímetro” de terra indígena, o governo Bolsonaro termina seu terceiro ano de destruição do meio ambiente cumprindo a promessa macabra do presidente de tentar reduzir áreas já demarcadas. Documento obtido pelo repórter Rubens Valente revela que a Fundação Nacional do Índio (Funai) apoiou uma “conciliação” entre indígenas e fazendeiros invasores que poderá cortar ao meio a Terra Indígena (TI) Apyterewa, no Pará, homologada em 2007 pelo presidente Lula.
No despacho protocolado na Justiça Federal em 4 de junho, o procurador federal Elder Novais Logrado aponta “vícios” no processo de demarcação da Apyterewa e afirma que a área técnica e a presidência da Funai “manifestaram-se pela não oposição à revisão do laudo antropológico referente à TI”.É a chancela oficial ao discurso bolsonarista de que existiria “muita terra para pouco índio”, de que o tamanho dessas áreas seria “abusivo“, como afirma o presidente, o que é falso. Trata-se de caso inédito desde a Constituição de 1988 em que a fundação que deveria proteger os indígenas e suas terras apoia a redução de uma área demarcada.Em novembro de 2020, equipe do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela pastora evangélica Damares Alves, intermediou e participou de reunião “surpresa” com fazendeiros dentro da Apyterewa para pressionar caciques a aceitar um “acordo” para reduzir a área indígena.
Em ofícios protocolados no STF nos últimos dois meses, um grupo de caciques da etnia parakanã e associações de agricultores que ocupam ilegalmente o território afirmaram que aceitam a redução de 50,7% da terra indígena, que tem 773 mil hectares. Apesar de a terra pertencer à União, quem assina o “termo de acordo” com o grupo de indígenas é a prefeitura de São Felix do Xingu (PA), que questiona a demarcação desde 2007. São Félix detém o maior rebanho bovino do Brasil e é o município campeão de emissões de gases de efeito estufa. A proposta foi apresentada porque o ministro do STF Gilmar Mendes abriu a possibilidade de uma “conciliação” entre indígenas e invasores, em processo ajuizado pela prefeitura.
Os documentos da Funai foram apresentados ao STF por advogados da prefeitura. Em despacho de 20 de outubro de 2020, o delegado da PF Marcelo Xavier, que preside a Funai, escreveu que “a via conciliatória deve ser buscada”. Na época, o Ministério da Justiça era comandado por André Mendonça, que nesta semana foi aprovado pelo Senado para ocupar uma vaga de ministro do STF, indicado por Bolsonaro.Os 392 mil hectares de que a associação parakanã concorda em abrir mão têm valor de mercado estimado em até R$ 3,9 bilhões, e o “acordo” protocolado no STF não prevê nenhum tipo de compensação ou indenização para os indígenas.
Em entrevista, o cacique Kaworé Parakanã, um dos que assinam o documento, afirma que se sentiu ameaçado. “Eu fiquei com medo mesmo. Porque a gente tem família, nossos filhos, pais, irmãos, amigos.” Ele já declarou ao MPF de Altamira (PA) que foi “enganado”, mas depois recuou e assinou outro documento aceitando a redução de sua terra. O “termo de acordo” prevê um “novo estudo antropológico da área, de maneira que seja encontrada a real delimitação de ocupação tradicional indígena”, jogando no lixo o processo documentado e finalizado há 14 anos. O tamanho da terra indígena havia sido definido em 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Em 2007, o STJ decidiu por unanimidade pela legalidade da demarcação, após questionamento da prefeitura.
A grilagem de terras na Apyterewa explodiu no governo Bolsonaro, que é obrigado a retirar os invasores e nada fez– hoje, ela é a segunda terra indígena mais desmatada do país, segundo dados do Inpe. A prefeitura e líderes políticos da região apoiam os mais de 1,5 mil invasores, que já ameaçaram equipes do Ibama, cercaram uma base da Força Nacional e destruíram pontes para impedir a fiscalização.Em vídeo publicado no último dia 14, um grupo de indígenas acompanhado por um dos caciques que assinam o documento recebe equipamentos de um fazendeiro para abrir um “picadão” na terra
BALSAS DE GARIMPO TOMAM RIO MADEIRA
As imagens de centenas de balsas perfiladas em busca de ouro no Rio Madeira correram o mundo na semana passada como símbolo do colapso da fiscalização e do avanço do garimpo na Amazônia. Resultaram no que parecia impossível: depois de quase três anos impedidos de trabalhar pra valer, fiscais do Ibama destruíram 131 balsas. Como a ação foi avisada, praxe neste governo, mais de 200 conseguiram escapar. Cada balsa custa em média R$ 50 mil.O garimpo ilegal no Rio Madeira não é novidade. Em 2017, a sede do Ibama em Humaitá (AM) foi destruída por garimpeiros (com apoio do prefeito, que depois foi preso), em retaliação a uma operação no Madeira.
Foto: Bruno Kelly/Greenpeace
PAULO GUEDES SEGUE NEGANDO A CRISE DO CLIMA
O Ministério da Economia publicou na última quinta-feira (2) uma nota “informativa” (sic) dizendo que a recessão técnica na qual o Brasil entrou, com a queda do PIB no terceiro trimestre, foi ocasionada por “fatores climáticos adversos e pontuais da natureza”. Ou seja, além de ignorar a inépcia do ministro Paulo Guedes e de sua equipe (além do fato não desprezível de que o país não tem governo), a pasta segue negando também que o aquecimento global já cobra a conta da economia brasileira – algo que só tende a piorar caso o país siga elegendo negacionistas climáticos como Jair Bolsonaro. O OC explica neste fio que a bola vem sendo cantada há décadas por cientistas brasileiros.
AGRO RECLAMA DE LEI EUROPEIA…
Primeiro foi a Sociedade Rural Brasileira cuspindo ódio por causa proposta de legislação europeia contra o desmatamento importado. Na semana passada foi a vez da Aprosoja, a Associação Brasileira dos Produtores de soja. Numa nota no último dia 23, a associação chamou a proposta europeia de “protecionismo disfarçado” e de “afronta à soberania nacional”. Lá pelas tantas os autores da nota disparam uma frase de bêbado: “Sabemos que o foco dos europeus sempre foi a Amazônia e suas riquezas” (a gente fica sem entender se são protecionistas ou colonialistas). Os europeus aparentemente atingiram um nervo no ogronegócio.
…E DESMATAMENTO PODE AFETAR BALANÇA COMERCIAL
Na última segunda-feira, o jornal O Globo publicou em sua manchete que US$ 50 bilhões em exportações brasileiras, ou metade das vendas do agronegócio para o exterior, pode estar em risco diante do que o jornal chama de uma “nova onda de protecionismo global”. No caso do agro, o principal risco é a lei europeia contra desmatamento importado, apresentada no dia 17 e que ainda precisa ser votada pelos países do bloco. O ministro Carlos França (Relações Exteriores) chamou a proposta de “miopia”, mas silenciou sobre os 13,2 mil quilômetros quadrados de desmatamento em 2021.
FRAUDE + CORRUPÇÃO = GRILAGEM
A Transparência Internacional mapeou 21 práticas de fraude e corrupção que viabilizam a grilagem de terras no país. A entidade destaca no documento a formação de milícias privadas para extorquir, expulsar e silenciar ocupantes legítimos. Povos indígenas e comunidades tradicionais estão entre os principais alvos.Foram analisadas investigações em oito Estados na Amazônia e no Nordeste. Entre elas, a Operação Faroeste, sobre um esquema de venda de decisões judiciais na Bahia que permitiu a grilagem de área cinco vezes maior que a cidade de Salvador, e a Operação Karipuna, que denunciou uma organização criminosa pela venda de imóveis grilados dentro da Terra Indígena Karipuna, em Rondônia.
Enquanto isso, os PLs da Grilagem (2.633 e 510, apresentados num combo sinistro) avançam no Senado, em acordão nas comissões de Meio Ambiente e de Agricultura e Reforma Agrária. Um relatório juntando ambos que até agora ninguém viu deve passar por votação simbólica nas duas comissões na semana que vem, ficando pronto para ir a plenário ainda este ano.
PL DA BOIADA PODE IR A VOTO NA SEMANA QUE VEM
No pacote do PL da Grilagem também deve ser votado simbolicamente nas duas comissões do Senado o PL da flexibilização do licenciamento ambiental, a “mãe de todas as boiadas”. A relatora, a senadora Kátia Abreu (PP-TO), que foi à COP26 pagar de preocupada com o clima e com a imagem do Brasil, passou os últimos dias em silêncio, fugindo de questionamentos de ambientalistas e da imprensa. Mas foi vista beijando a mão de Jair Bolsonaro em troca de uma vaga no TCU.
Dados do Instituto Socioambiental e da UFMG mostram que apenas uma das obras potencialmente beneficiadas pela isenção do licenciamento, a pavimentação da rodovia BR-319 (Porto Velho-Manaus), pode causar 170 mil quilômetros quadrados de desmatamento (mais do que uma Inglaterra) até 2050, com emissões equivalentes de 8 bilhões de toneladas de gás carbônico (quatro vezes a emissão bruta anual do Brasil) no período.