Enquanto carro a diesel sofre reveses importantes ao redor do mundo, congressistas brasileiros tentam importar essa tecnologia.
O maior escândalo envolvendo a indústria automobilística nas últimas décadas teve seu epílogo nesta quarta-feira (11): a Volkswagen admitiu ao governo dos Estados Unidos a culpa por ter incluído em milhões de carros de passeio movidos a óleo diesel um software para enganar as autoridades durante testes de emissão de poluentes. A gigante alemã terá de pagar US$ 4,3 bilhões em multas, além dos US$ 17,5 bilhões com que havia se comprometido no ano passado para compensar consumidores ludibriados. Na terça-feira, um executivo da Volks ligado ao esquema foi preso pelo FBI.
O anúncio do acordo vem menos de uma semana depois que uma organização internacional de pesquisas mostrou que, na Europa, carros leves a diesel emitem proporcionalmente dez vezes mais óxidos de nitrogênio que caminhões e tratores, e cerca de um mês depois que prefeitos de quatro grandes cidades do mundo – Atenas, Madri, Cidade do México e Paris – se comprometeram a proibir esses automóveis a partir de 2025.
Juntos, esses eventos sinalizam dificuldades crescentes para o diesel veicular, mesmo nos países que contam com as melhores regulações antipoluição do planeta. E deveriam servir como uma nota de cautela para aquela que talvez seja a única nação do mundo hoje disposta a facilitar a penetração de carros de passeio a diesel no mercado: o Brasil.
O país tem hoje tramitando no Congresso dois projetos destinados a liberar o carro a diesel: numa comissão especial da Câmara dos Deputados trafega o PL 1.013/2015, que libera a fabricação e a venda desses automóveis. Na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, pode ser votado a partir de fevereiro um projeto de decreto legislativo que susta resoluções do Departamento Nacional de Trânsito e do Conselho Nacional dos Combustíveis vetando o diesel para carros leves. Ambos enfrentam forte mobilização da sociedade civil e oposição de uma gama de atores que vão do Ministério de Minas e Energia à indústria canavieira. Mesmo assim, o PL 1.013 quase foi votado duas vezes em 2016.
“Todo mundo é contra”, diz sobre o projeto Cristiano Façanha, pesquisador do Conselho Internacional para o Transporte Limpo, o ICCT.
A ONG foi a responsável indireta por expor o caso Volks, quando mandou à EPA (Agência de Proteção Ambiental dos EUA) dados que sugeriam que as emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) dos carros a diesel nos EUA eram maiores em condições reais de uso do que nos testes de certificação. Uma investigação foi feita pela EPA, que concluiu em setembro de 2015 que a Volks instalou em milhões de carros dispositivos destinados a fraudar os testes.
Dez vezes pior
Na semana passada, o ICCT voltou à carga. Seus técnicos analisaram dados sobre emissões em laboratório e em condições reais de uso dos veículos submetidos aos padrões de qualidade de diesel Euro 6 (carros de passeio) e Euro VI (veículos pesados).
O estudo foi feito com 30 modelos de automóvel e 24 modelos de ônibus, caminhões e tratores. Concluiu que, por quilômetro rodado, os veículos pesados emitem em média 0,2 grama de NOx por quilômetro, contra 0,5 dos carros de passeio. O padrão Euro em vigor limita a emissão em 0,08 g/km. Como os veículos pesados consomem mais diesel por quilômetro, a poluição total por litro é proporcionalmente dez vezes maior nos carros leves.
Segundo o ICCT, isso se deve a falhas de regulação europeias: os testes são muito mais rigorosos para os veículos pesados do que para os carros de passeio.
“O ciclo de testes para os veículos de passageiros não é representativo do mundo real”, diz Façanha. “Existem tecnologias para controlar a emissão dos carros a diesel, mas, com um ciclo de testes menos rigoroso, as montadoras optaram pelo controle mais barato.” Segundo ele, a tecnologia antipoluição que permitiria igualar os resultados na rua e no laboratório reduziria a vantagem econômica do motor a diesel em relação ao motor a gasolina. Carros a gasolina têm desempenho idêntico nas duas situações.
A Europa é hoje o maior mercado do mundo para carros a diesel. Só em 2014 foram 8,8 milhões de unidades vendidas – cerca de 50% das vendas de veículos de passeio. Nos EUA, apenas 5% dos carros são a diesel.
Segundo Façanha, essa adoção tão disseminada foi, ironicamente motivada pela maior eficiência do motor a diesel – que consome menos e, na Europa, emite proporcionalmente menos CO2 que o carro a gasolina. No entanto, prossegue, “isso foi mortal, literalmente”: as emissões de NOx por esses carros são sete vezes maiores na rua do que nos testes, e hoje esses automóveis são as principais fontes europeias desse tipo de poluição. O NOx é precursor do ozônio troposférico, associado a problemas respiratórios e mortes prematuras. Na semana passada, o jornal The Guardian noticiou que a cidade de Londres ultrapassou, em uma semana, o limite de NOx de todo o ano de 2017.
Imagina na Jamaica
Se na Europa, que tem a regulação ambiental mais estrita do mundo, os carros não conseguem cumprir o padrão de qualidade ambiental, o que ocorreria no Brasil?
Façanha e seu colega Tim Dallmann, do ICCT, publicaram em 2015 uma análise que chama atenção para essa questão. Além do NOx, eles citam um segundo problema: os particulados finos, que causam câncer. Como o Brasil tem um diesel muito sujo – aqui o limite de particulados é cinco vezes maior que o na Europa, e ainda se vende diesel no interior com 50 vezes mais enxofre que nas regiões metropolitanas –, os filtros de particulado que rodam nos carros europeus poderiam se tornar inviáveis.
“Se o Brasil liberasse o carro a diesel, este por lei poderia emitir 30 vezes mais que um carro flex”, compara o pesquisador. O resultado, também segundo o ICCT, seriam de 32 mil a 150 mil mortes adicionais por conta de poluição veicular até 2050 no país, a depender da velocidade da entrada do carro a diesel no mercado.
Os deputados que defendem essa tecnologia em nome da “liberdade de escolha” do consumidor argumentam que o problema não é com o motor a diesel em si, mas sim com a maneira como a poluição é regulamentada e regulada. Embora isso seja verdade, o caso dos testes europeus e o escândalo da Volks nos EUA traz uma lição para o Brasil, a pátria dos biocombustíveis: se algo não está quebrado, o melhor que você tema fazer é não tentar consertar.