• 11 de agosto de 2015
  • JORNAL DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Os ensinamentos da morte de Cecil

Gland, Suíça, 7/8/2015 – Cecil, o magnífico e querido leão que fazia parte de um projeto de pesquisa de longo prazo, foi atraído para fora de seu refúgio no Parque Nacional Hwange, no Zimbábue, por um caçador ilegal que disparou contra ele e o deixou agonizar até morrer.

O fato, acontecido em julho, gerou tamanho escândalo que vale a pena parar para pensar no que aconteceria se a partir de agora fosse proibida a caça de troféus em todo o continente africano.

Essa prática é o fim da limitada caça de “alto valor”, na qual pessoas, que costumam ter muito dinheiro e são principalmente ocidentais, pagam elevadas quantias para poderem matar animais.

Imaginemos o que aconteceria na África austral, uma área que ocupa quase o dobro da soma dos parques nacionais da região.

O fato geral tal indignação e repugnância, pois se mata amimais por esporte, e em alguns casos, como no dos leões, nem mesmo se come sua carne. Inclusive os milhões de caçadores de fim de semana com suas geladeiras cheias têm dúvidas sobre a caça de troféus.

É uma prática que quase não tem mais cabimento em um mundo moderno, quando a humanidade avança para uma posição ética que, cada vez mais, outorga aos animais os mesmos direitos morais que os seres humanos se concedem (ao menos em princípio) entre si.

Agora, imaginemos que a União Europeia e a América do Norte proíbam a importação de troféus, enquanto Namíbia, África do Sul, Zimbábue e outros países proíbam a caça de troféus, as companhias aéreas se neguem a transportá-los e a atividade morra lenta (ou rapidamente), livrando o mundo dessa suja mancha sobre a consciência coletiva.

Nos concentramos em olhar para a África austral, orgulhosos do que conseguimos assinando uma petição na internet, pressionando dirigentes políticos e compartilhando e comentando artigos no Facebook.

Salvamos os leões? Preservamos áreas naturais? Desferimos o golpe de graça ao tráfico de vida silvestre? Livramos as comunidades locais dos caçadores estrangeiros imperialistas?

Voltemos ao Parque Nacional Hwange, onde Cecil foi morto. A Autoridade de Gestão de Parques e Vida Silvestre do Zimbábue, responsável pela gestão desse e de outros parques, agora tem enormes problemas.

O órgão obtém sua renda para proteger, conservar e administrar a vida silvestre em todo o território nacional da caça de troféus, e recebe magros recursos do governo central, que não tem precisamente fama de incentivar a boa governança nem a transparência em matéria de administração de fundos.

O orçamento do Parque Hwange sofre um corte radical e há poucos recursos para automóveis ou equipamentos de patrulha. A carne procedente de caçadores ilegais aumenta e os guardas florestais não têm equipamentos para enfrentá-los. O uso de armadilhas com alarmes é indiscriminado e permite capturar muitos leões, entre outros predadores, que agonizam e sofrem uma morte sem sentido.

Na Namíbia, mais da metade das áreas de conservação comunitária, que cobrem 20% do país, estão em colapso, porque sua renda, não derivada de atividades relacionadas à caça, como o turismo, não é viável e não é possível encontrar fontes alternativas de renda.

Os espaços de conservação comunitária da Namíbia são uma inovação da década de 1990, e são responsáveis pelo pronunciado aumento de várias espécies silvestres fora dos parques nacionais, como elefantes, leões e rinocerontes negros. A renda procedente da caça de troféus e do turismo impulsionou as comunidades a dedicarem suas terras à conservação.

As comunidades ficam com 100% dos benefícios do uso sustentável da vida silvestre, incluída a caça, quase 18 milhões de dólares namíbios (US$ 1,2 bilhão) em 2013, que usaram para construir escolas, centros de saúde, estradas, capacitar e empregar 530 guardas florestais para proteger a fauna e a flora.

Quase dois milhões de refeições ricas em proteínas por ano foram um subproduto da caça. Agora tudo isso virou fumaça. Algumas poucas áreas de conservação conseguem doadores ricos para não desaparecer, e cruzam os dedos na esperança de que essas doações se mantenham nas próximas décadas.

Os guardas florestais estão desempregados, sem poderem alimentar suas famílias e em busca de alguma oportunidade para conseguir uma renda. As comunidades dedicadas à conservação estão furiosas, pois ninguém as consultou sobre tão importante decisão. Poucos jornalistas e ativistas sociais refletem sua própria visão da situação.

As comunidades e as autoridades responsáveis pela conservação voltam a ser indispor.

Ali onde colapsaram as áreas de conservação, se destrói a vida silvestre. As épocas más anteriores à reforma voltaram e a fauna vale mais morta do que viva.

Só ventres famintos se alimentam da caça ilegal e os caçadores ilegais ganham terreno. As comunidades locais já não estão interessadas em fornecer informação à polícia para ajudar a proteger a vida silvestre, os programas de guardas florestais faliram por falta de fundos, e os chifres de rinocerontes, os ossos de leão e o marfim dos elefantes embarcam ilegalmente rumo à Ásia Pacífico.

Na África do Sul, terminou a caça de troféus, inclusive a pequena proporção que estava “cercada”. Nas propriedades privadas, que cobrem cerca de 20 milhões de hectares, a renda procedente da vida silvestre sofreu colapso.

As propriedades com paisagens pitorescas, perto das grandes rotas ou atrações turísticas e que contam com infraestrutura turística, sobrevivem graças ao fototurismo, mas acabou a época de ampliar a vida silvestre comprando terras e repondo com mais exemplares.

A maioria dos proprietários voltou a ter gado bovino e caprino e a cultivar para poder pagar a educação dos filhos e a hipoteca da casa.

A vida silvestre nessas terras se extinguiu, em grande parte, com seu habitat, e voltaram as paisagens degradadas pela agricultura, que prevaleceram antes dos anos 1970, quando foi legalizado o uso da vida silvestre pelos fazendeiros (incluídos os caçadores).

Os leões que estavam nessas terras se foram faz tempo, e os poucos que restam nos parques nacionais são mortos quando ultrapassam seus limites, porque se converteram em um problema. O grande êxito em matéria de conservação na África do Sul se deteriora rapidamente.

Especulação? Sim, mas é um prognóstico razoável porque já passou.

A proibição da caça de troféus na Tanzânia, entre 1973 e 1978, no Quênia em 1977, e em Zâmbia entre 2000 e 2003, acelerou a rápida perda de vida silvestre pela eliminação de incentivos à conservação. Os primeiros informes indicam que há indícios semelhantes em Botsuana, que no ano passado proibiu todo tipo de caça.

Choremos por Cecil, mas tenhamos cuidado com o que desejamos… Envolverde/IPS

* Rosie Cooney é presidente do Grupo Especialista em Uso Sustentável e Sustento da União para a Conservação da Natureza (UICN). As opiniões contidas nesse artigo são de responsabilidade da autora e não representam necessariamente as da IPS – Inter Press Service, nem podem lhes ser atribuídas. Tampouco expressam necessariamente os pontos de vista da UICN.

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