Sexto grande relatório do IPCC, publicado hoje, mostra que planeta esquentou 1,09ºC e, desse total, 1,07ºC são provavelmente atribuíveis a nós
É inequívoco que os seres humanos esquentaram o planeta e mudanças climáticas rápidas e disseminadas vêm acontecendo. É com essa frase que um comitê de 800 cientistas do mundo inteiro bate o último prego no caixão do negacionismo ao apresentar o alerta mais completo e poderoso até agora sobre as causas, os efeitos atuais e futuros e o caminho possível para limitar a crise do clima.
O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) apresentou nesta segunda-feira (9) o sumário executivo da primeira parte de seu Sexto Relatório de Avaliação (AR6). O documento de 41 páginas, destinado à leitura por tomadores de decisão, é uma síntese do relatório de centenas de páginas contendo a revisão de todo o conhecimento científico sobre a base física das mudanças do clima. No ano que vem, ele será seguido de mais dois volumes, um sobre impactos e vulnerabilidades e outro sobre as formas e os custos de atacar os causadores da crise – os gases de efeito estufa.
Uma das maiores novidade do AR6 em relação aos relatórios anteriores do IPCC é que, pela primeira vez, a ciência não apenas tem certeza da influência humana, como conseguiu quantificá-la: desde a era pré-industrial, o mundo esquentou 1,09oC, e desse total apenas 0,02oC podem ser atribuídos a causas naturais. A fatia do leão do aquecimento global, 1,07oC, é provavelmente de responsabilidade das atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento, que emitem gases de efeito estufa.
Os efeitos disso vêm sendo amplamente documentados e, pior que isso, sentidos por gente de todos os países e todas as classes sociais (com mais gravidade, claro, entre os mais pobres). Apenas nas últimas semanas assistimos a calor de 49oC no Canadá, incêndios florestais na gélida Sibéria, inundações catastróficas na rica Europa Central, oito meses de chuva em um dia na China e uma onda de frio polar causada por alterações na circulação do ar antártico no Brasil. Falando neste, aliás, o Centro-Sul enfrenta a pior seca em 91 anos, que deve nos deixar sem luz em breve.
O IPCC confirma essas tendências ao mostrar que ondas de calor estão mais frequentes – inclusive as marinhas, que arrebentam recifes de coral da Bahia à Austrália –, as chuvas intensas aumentaram, a proporção de furacões intensos idem, e cada uma das últimas quatro décadas foi mais quente que todas as antecessoras desde 1850, quando as medições com termômetros tiveram início.
E, claro, vai piorar. Em outra conclusão chocante, o painel constatou que na próxima década, o que quer que nós façamos para cortar emissões, a temperatura global ultrapassará 1,5oC, limite mais ambicioso do Acordo de Paris e a partir do qual entramos em mares climáticos nunca dantes navegados (mas certamente revoltos). Se conseguirmos implementar o acordo do clima, teremos chance de devolver o termômetro ao mais palatável 1,4oC entre 2081 e 2100. Mas, se o mundo subitamente passasse a ser governado por Trumps e Bolsonaros e abandonasse o esforço para cortar emissões, chegaríamos ao fim do século com até 5,7oC de elevação de temperatura acima da média pré-industrial. O nome disso seria apocalipse.
“Este relatório é um toque de despertar. Hoje nós temos um quadro muito mais claro do clima passado, presente e futuro, o que é essencial para entendermos aonde estamos indo, o que pode ser feito e como podemos nos preparar”, disse a co-presidente do Grupo de Trabalho 1 do IPCC, a climatóloga francesa Valérie Masson-Delmotte.
Mesmo com a estabilização em 1,5oC, adverte o AR6, o mundo ainda precisa se preparar para “eventos extremos sem precedentes” no registro histórico. Daí o relatório também ter inovado e feito cenários regionais e de mais curto prazo, para o meio do século, para orientar políticas de adaptação que os governos teriam de ter começado ontem a adotar em grande escala. Há péssimas notícias para o Brasil: o Nordeste já é hoje uma das regiões do planeta onde é mais clara a influência do aquecimento global em secas que afetam a ecologia e a agricultura (alô, plantadores de soja da Bahia, do Piauí e do Maranhão) e o oeste da região Centro-Oeste e sul da Amazônia serão uma das mais afetadas por extremos de calor nas próximas décadas.
A saída é uma só: “do ponto de vista da ciência física, limitar o aquecimento global induzido por seres humanos requer limitar as emissões cumulativas de CO2, atingindo pelo menos emissão líquida zero”. Só que, para termos a melhor chance de chegar lá, o CO2 que ainda podemos emitir é bem pouco: 300 bilhões de toneladas, o equivalente a menos de dez anos de emissão no ritmo atual. Isso não casa em nada com a narrativa vendida como “ambiciosa” pelos governos mundiais, que acham que estão abafando ao prometer zerar emissões líquidas em 2050. É pressão extra sobre a COP26, a conferência do clima de Glasgow, em novembro, na qual o aumento da ambição estará na ordem do dia. “Se reduzirmos as emissões líquidas a zero em 2050, poderemos manter as temperaturas perto de 1,5ºC”, afirmou Masson-Delmotte.
“Esse relatório precisa ser o sino da morte para o carvão mineral e os combustíveis fósseis, antes que eles destruam nosso planeta”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. “É um código vermelho para a humanidade. Os sinais de alerta são ensurdecedores e a evidência é irrefutável; as emissões de combustíveis fósseis e desmatamento estão sufocando nosso planeta e colocando bilhões de pessoas em risco imediato”, prosseguiu.
Antes que algum tio do zap acuse o painel de viés, alarmismo ou “comunismo”, cabe explicar que cada linha do texto do sumário foi revisada e aprovada por 196 governos do mundo inteiro – da progressista Alemanha à recalcitrante Arábia Saudita, passando por países negacionistas, como Austrália e Brasil, ex-negacionistas como EUA e Canadá, e tradicionais campeões da causa climática, como Costa Rica e Tuvalu.
Esse veto prévio dos governos sempre fez parte da dinâmica do painel (que não se chama “intergovernamental” à toa) e acaba retirando um tanto da contundência das afirmações dos sumários do IPCC.
Para dar apenas alguns exemplos, nos dez dias de plenária virtual para fechar o sumário, a afirmação sobre o caráter “inequívoco” da influência humana sofreu objeções e chegou a ser retirada de uma das versões do texto, trocada pelo mais anódino “os humanos esquentaram o clima”, sem o adjetivo (e depois colocada de volta). A afirmação de que até 94% das ondas de calor marinhas nas últimas décadas foram causadas por influência humana acabou saindo do sumário. E a linguagem do parágrafo que diz que zerar emissões líquidas é pré-condição para estabilizar o clima “em qualquer nível” foi diluída e trocada por “em um nível específico”.
Essas concessões à diplomacia, que já fizeram alguns cientistas desistirem do painel no passado e outros criticarem o caráter “coxinha” dos sumários, não significam de forma alguma intervenção nas conclusões científicas do IPCC. A ciência é soberana e suas conclusões jamais são alteradas. Números que eventualmente fiquem de fora do sumário, como o das ondas de calor marinhas, são mantidos no relatório principal – que no entanto dificilmente é lido por prefeitos, governadores e chefes de Estado.
Ao contrário, esse conservadorismo é uma das razões pelas quais o IPCC tem tanta credibilidade: a ciência que vai parar nos relatórios e as declarações do sumário executivo são o oposto de alarmista. Previsões feitas nos dois últimos relatórios (2007 e 2013) sobre nível do mar e degelo do Ártico, por exemplo, eram mais conservadoras do que alguns estudos mais recentes já vinham afirmando na época da publicação. E acabaram incorporadas em relatórios posteriores. (CLAUDIO ANGELO e FELIPE WERNECK)
O Observatório do Clima produziu um resumo comentado em português do sumário do IPCC.