Paixão amazônica
As chuvas retornaram às regiões Sudeste e Centro-Oeste, esfriando as apostas de um “inevitável racionamento” de energia por causa do esgotamento dos reservatórios das nossas principais hidrelétricas. Parece adequado o momento para uma retomada do debate sobre as condições da oferta de energia no Brasil, como propõe o editorial do Valor Econômico da segunda-feira 14 de janeiro, do qual tomei a liberdade de extrair algumas lúcidas sugestões.
Uma delas é que é preciso analisar as razões pelas quais geradoras importantes estão operando com níveis elevados de ineficiência resultantes da utilização de equipamentos sem a manutenção adequada e permitindo que os reservatórios acumulem os efeitos do assoreamento dos rios. Outra conclusão é que é preciso enfrentar os problemas que permitiram o descasamento entre o aumento da capacidade instalada de geração nos últimos anos e a conclusão dos projetos das linhas de transmissão.
Ninguém pode ter dúvidas de que a base da matriz energética brasileira, erguida em razão da disponibilidade de recursos hídricos, é reconhecida e invejada como a mais limpa do mundo. Ela oferece geração permanente e segura a custos competitivos, mas tem a dependência do regime de chuvas, daí ter de manter uma reserva importante de energia das termoelétricas, que têm funcionado nas emergências como a deste ano.
Nos dez anos a partir de 2002, o crescimento da capacidade de oferta de energia hídrica na matriz brasileira foi exponencial, algo próximo de 50% de aumento, sem que essa disponibilidade tivesse sido acompanhada pela expansão das linhas de transmissão. Criou-se um gargalo: o País aumentou nos últimos anos a capacidade instalada de geração, mas não conseguiu realizar a maioria dos projetos de transmissão, muitos deles enfrentando obstáculos antes mesmo da instalação das obras e outros interrompidos e atrasados pelas dificuldades na obtenção do licenciamento ambiental.
O País tem mais de uma dúzia de bons projetos e outro tanto de pré-projetos em análise para uma ampliação segura da oferta de energia limpa, capaz de garantir os objetivos de crescimento já na década atual, que deverá proporcionar as condições de sustentabilidade e melhor padrão dos níveis de emprego para os 150 milhões de cidadãos e cidadãs brasileiros na faixa de idade entre 16 e 60 anos que estarão demandando o mercado de trabalho no fim do período e nos primeiros anos da década de 1920.
Não se trata apenas dos megaprojetos para os rios amazônicos, como os atuais nas bacias do Tapajós, do Araguaia e do Tocantins, que, além do volume de obras das usinas geradoras, demandarão investimentos demorados na realização das linhas de transmissão a grandes distâncias até as regiões de maior consumo. A resistência a tais empreendimentos – que se tornaram alvo preferencial de ONGs financiadas do exterior, recentemente tomadas de paixão amazônica, e outras tantas nacionais que bebem em obscuras fontes semelhantes – hoje tem a companhia de filiais especializadas em impedir o aproveitamento da energia eólica, uma fonte igualmente limpa, a pretexto de proteger o meio ambiente e diversos tipos de fauna dos efeitos do movimento das pás e da velocidade dos ventos, sem nenhuma comprovação empírica de suas teses.
Isso acontece na medida em que os investimentos no setor progrediram fortemente na última década, com tecnologia e projetos desenvolvidos preferencialmente no Brasil. Basta ver que nos últimos dois anos a oferta dessa nova energia dobrou de volume. A expansão do parque eólico tem sido retardada, no entanto, com a complacência dos governos e da própria sociedade diante dos que se autopromovem protetores dos animais e de seu hábitat (que mal conhecem).
Além de gerar a energia mais limpa do mundo, baseada na utilização dos seus recursos hídricos, o Brasil está ampliando o uso das fontes alternativas não poluentes com o aproveitamento da biomassa e o desenvolvimento mais recente das possibilidades da energia eólica.
O governo e a sociedade brasileira precisam se unir, contudo, para acionar os controles, visando corrigir as ineficiências da matriz hidrelétrica e eliminar os anacronismos do processo de concessão da licença ambiental para desobstruir, finalmente, os mecanismos que impedem a realização dos projetos de transmissão da energia limpa para todas as regiões do País.
* Delfim Netto é economista, formado pela Universidade de São Paulo, professor de Economia, e foi ministro de Estado e deputado federal.
** Publicado originalmente no site Carta Capital.