• 29 de abril de 2014
  • JORNAL DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Plano Nacional de Mineração e a nova versão do Programa Grande Carajás

“A única concessão que o novo Marco Legal da Mineração vem oferecer à sociedade que vive no entorno das regiões ‘mineráveis’ ou que está ameaçada pela infraestrutura do escoamento é o aumento dos royalties”, avalia o missionário comboniano Dário Bossi.

“O Programa Grande Carajás alterou profundamente a história, a geografia e o ambiente da Amazônia oriental, e suas consequências continuam presentes na vida cotidiana das cidades”, diz padre Dário Bossi, que há sete anos atua como missionário comboniano no Pará e na região amazônica. Segundo ele, 21 dos 27 municípios dos estados do Pará, Maranhão e Tocantins, atravessados pela Estrada de Ferro Carajás, “possuem Índice de Desenvolvimento Humano – IDH menor que a média dos seus Estados”.

O Programa, criado pela Vale do Rio Doce durante o governo João Figueiredo (1979 a 1985), surgiu com a promessa de proporcionar à região diversas oportunidades, desde projetos de industrialização do minério extraído, até beneficiamentos para a agroindústria e o reflorestamento. Contudo, 30 anos depois de sua implantação, “muito disso ficou no papel. (…) No chão de nossas regiões ficaram os enormes buracos das minas da Serra Norte; no coração da Floresta Nacional de Carajás, a ferrovia de 900 Km entre Parauapebas (PA) e o porto de São Luís do Maranhão (para uso exclusivo da Vale), com um fluxo que hoje chega a escoar mais de 100 milhões de toneladas de minério de ferro por ano”, informa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Bossi frisa que o Plano Nacional de Mineração, que irá estimular a exploração de minérios no Brasil até 2030, tende a agravar a qualidade de vida das pessoas que vivem na região amazônica, especialmente por conta do segundo Programa Grande Carajás, previsto para ser implantado nos próximos anos. “A Vale disfarçou, chamando-o de ‘expansão’, ‘capacitação logística’ ou alegando que se trata de ajustes estruturais a alguns segmentos da ferrovia. Na prática, está sendo aberta uma nova mina, construída uma segunda ferrovia e ampliado o porto com a instalação de um píer totalmente novo”, relata. Para ele, o projeto é ilegal porque “não foi realizado um adequado Estudo de Impacto Ambiental e não foram realizadas audiências públicas nas comunidades atingidas como prevê a Lei. E acrescenta: “Em poucos anos, até 2017, a Vale pretende chegar a escoar 230 milhões de toneladas de minério de ferro, mais que o dobro de hoje.

Passarão trens em frente às comunidades com uma média de 27 minutos entre um e outro; já que, ao passar do trem, o barulho interrompe toda atividade ao longo de quatro minutos (pense, por exemplo, nas escolas), isso significa um sequestro do tempo dos moradores de quase duas horas por dia!”.

As implicações do Projeto Grande Carajás serão discutidas no Seminário Internacional “Carajás 30 anos: resistências e mobilizações frente a grandes projetos na Amazônia Oriental”, na Universidade Federal do Maranhão, em São Luís, entre os dias 5 e 9 de maio.

Padre Dário Bossi, missionário comboniano, é membro da rede Justiça nos Trilhos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Como e em que contexto foi criado o Programa Grande Carajás e como o avalia, 30 anos depois?

Dário Bossi - O Programa Grande Carajás foi criado pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce (hoje, privatizada, chama-se simplesmente Vale). Visava, principalmente, garantir as condições infraestruturais para a exploração e transporte das gigantescas jazidas de minério de ferro do sudeste do Pará. Foi ideado no contexto de políticas desenvolvimentistas da ditadura militar (governo Figueiredo), com a participação ativa de grandes grupos econômicos privados e com o financiamento de agências multilaterais de desenvolvimento.

Extinto oficialmente em 1991, tem financiado, com dinheiro e dívida pública, o escoamento de minério para o exterior e a instalação de polos siderúrgicos tecnologicamente pobres e de alto impacto ambiental. O Programa Grande Carajás alterou profundamente a história, a geografia e o ambiente da Amazônia oriental e suas consequências continuam presentes na vida cotidiana das cidades, dos povoados rurais, dos povos indígenas, dos quilombolas, dos ribeirinhos, dos grupos sociais tradicionais, além de ter provocado intensas alterações nos biomas e paisagens.

Esse projeto planejado desde cima, sem interlocução com as comunidades e sem um plano integrado de gestão sócio-econômico-ambiental, a serviço do interesse exclusivo da mineração e siderurgia, nem soube proporcionar uma efetiva distribuição à população dos benefícios econômicos. Entre as maiores consequências negativas, vejo: desmatamento, trabalho escravo, migrações e descontinuidade no processo de identificação das comunidades em seus territórios, conflitos por terra, agressão e dizimação das culturas e da vida indígena e quilombola, poluição, desorganização urbana e violência devidas ao intenso êxodo em busca de trabalho e vida.

Hoje, o desemprego é maior nos municípios atravessados pela Ferrovia (taxa de 16,9%) do que a média dos Estados do Maranhão (11,8%) e do Pará (13,7%); 21 dos 27 municípios atravessados pela ferrovia possuem IDH menor que a média dos seus Estados.

IHU On-Line – Desde quando o senhor atua como missionário na região amazônica?
Dário Bossi - Moro em Piquiá, uma das comunidades mais atingidas pelo ciclo de mineração e siderurgia, há sete anos. Não é muito tempo, mas ao longo desses anos fiz questão de escutar com atenção as histórias de dor e resistência e os sonhos infringidos de muitas pessoas e comunidades, na convicção de que a história tem que ser aprendida e narrada ‘desde baixo’.

IHU On-Line – Ao longo desses anos em que o senhor está engajado com a luta contra os impactos da mineração, quais são suas impressões dessa questão, especialmente da forma como ocorre o processo de extração do minério e o subdesenvolvimento das cidades próximas às minas?

Dário Bossi – Um dos livros que inspirou a vocação missionária de muitos de nós é a obra de Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina. Essa é a impressão física que se sente ao morar nessas regiões amazônicas feridas e saqueadas. Um fluxo contínuo de recursos e vida que vai abastecer a fome de outros. Imaginem: conhecemos famílias que sobrevivem com menos de um salário mínimo ao mês, e ao lado de suas casas passam cotidianamente 12 composições, três locomotivas e 330 vagões carregados de minério de ferro (é o trem maior do mundo), cujo valor bruto corresponde a mais de 80 milhões de reais por dia!

No Maranhão chegaram, algumas décadas atrás, caravanas de pobres de outras regiões do nordeste, mão de obra barata para os grandes projetos de ‘desenvolvimento’ e o latifúndio extensivo. O Eldorado da mineração atraiu muitos deles para uma nova migração aos garimpos da Serra Pelada, às minas da Vale em Parauapebas, e hoje aos grandes projetos de devastação da Serra Sul ou à construção da enorme barragem de Belo Monte. Cansamos de ver várias dessas pessoas voltando afinal de novo para cá, decepcionadas e vencidas, tendo que correr atrás da vida sem nunca encontrá-la. E o silêncio ensurdecedor dessas amplas pastagens, aqui onde 40 anos atrás era floresta nativa, fala mais alto que qualquer propaganda da Vale ou do governo sobre sustentabilidade.

IHU On-Line – Quais foram os projetos desenvolvidos pelo Programa Grande Carajás na Amazônia Oriental nestes 30 anos? Quem se beneficiou com ele?

Dário Bossi - O programa previa a instalação, no Pará e no Maranhão, de serviços de infraestrutura para o escoamento do ferro, a ampliação do sistema portuário, hidrovias e aproveitamento hidrelétrico das bacias hidrográficas, uma extensa malha de rodovias, vários aeroportos, grandes hidrelétricas. Por outro lado, visava também oferecer à região projetos de industrialização do minério extraído, agricultura, pecuária, pesca, agroindústria, florestamento, beneficiamento e industrialização de madeira. Pretendia proporcionar à região diversas oportunidades, bem além da simples exploração do minério de ferro. Mas muito disso ficou no papel.

No chão de nossas regiões ficaram os enormes buracos das minas da Serra Norte; no coração da Floresta Nacional de Carajás, a ferrovia de 900 Km entre Parauapebas (PA) e o porto de São Luís do Maranhão (para uso exclusivo da Vale), com um fluxo que hoje chega a escoar mais de 100 milhões de toneladas de minério de ferro por ano.

A população sofre pelos impactos da ferrovia: nos últimos nove anos, 77 pessoas foram atropeladas e mortas pelo trem da Vale (além dos animais de criação, sustento e fonte de renda de muitas comunidades). O barulho do trem e da buzina, dia e noite, é muito forte, bem como as vibrações de 26 mil toneladas de carga que passam a cada hora e provocam rachaduras nas casas e desmoronamento dos poços.

Também foi construída a Hidrelétrica de Tucuruí, principalmente para abastecer a produção energívora das plantas de produção de alumínio em São Luís e Belém. E o território do Maranhão está progressivamente sendo dominado pelo monocultivo de eucalipto: depois que as siderúrgicas desmataram a floresta nativa para conseguir carvão vegetal no processo de produção do ferro-gusa, as empresas chamam isso de ‘reflorestamento’, enquanto nossas comunidades o consideram ‘deserto verde’.

IHU On-Line – Qual a relação da Vale com os governos dos estados do Pará, Tocantins e Maranhão?

Dário Bossi - Por ocasião de cada campanha eleitoral, a Vale financia de maneira transversal candidatos de diversos partidos, garantindo assim uma certa influência sobre as administrações e os políticos. A isenção fiscal sobre bens e produtos exportados diminui sensivelmente a contribuição pública da Vale aos cofres públicos; no Pará, sobra para o estado 23% do total de royalties pagos pela companhia, sendo esses (no caso do ferro) 2% do faturamento líquido das atividades da Vale no estado. Ao Maranhão, não vai nem essa contribuição.

O contraste de uma empresa extremamente rica operando em estados entre os mais pobres do país chega a gerar dependência dos governos e das administrações municipais para com a filantropia estratégica da Vale.

Dessa forma, a mineradora negocia com os estados a participação da empresa no financiamento a projetos sociais no campo da educação, da saúde ou da moradia (mas não na reparação de danos provocados pela atividade mineira). Os estados vinculam-se à empresa, precisam desses fundos de investimento social e abafam eventuais críticas, implicitamente chantageados e dependentes desse dinheiro.

IHU On-Line – Em que consistem os movimentos de resistência ao Programa Grande Carajás? Como eles se articulam e quais suas conquistas nesse tempo de atuação?

Dário Bossi - Vou falar da rede Justiça nos Trilhos, onde eu atuo e que conheço melhor.
Temos três eixos de ação:

(a) Dizer não à expansão do saque dos recursos minerais. Nesse campo, estamos lutando contra a duplicação do sistema mina-ferrovia-porto da Vale, que é ilegal, não foi debatida com a população e agride territórios e comunidades. Conseguimos uma liminar que suspendeu as obras de duplicação por 45 dias e estamos ainda aguardando a sentença definitiva do Tribunal. Levamos esse caso até a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos.

(b) Reparação de danos. Acreditamos que é importante garantir aos atingidos pela Vale as devidas indenizações por danos materiais e morais. Exigir também compensações sociais e ambientais no caso de projetos já instalados é estratégia para evitar que a empresa, atacada no seu ponto mais sensível (que é o lucro), continue amplificando os ritmos de atividades e, consequentemente, os danos.

(c) Alternativas a esse desenvolvimento. Trabalhamos intensamente na educação popular, para o protagonismo das comunidades na gestão política e econômica de seus territórios. Promovemos experiências produtivas e de autossustentação alternativas ao modelo de enclave imposto pela mineração. Esforçamo-nos na disputa política e ideológica contra o mito do desenvolvimento e na afirmação de outros modelos de vida.

IHU On-Line – O senhor disse recentemente que novos projetos estão sendo planejados para a região amazônica, entre eles, a expansão do Sistema Norte da Vale, que pretende abrir uma enorme nova mina no coração da Floresta Nacional de Carajás, duplicar a Estrada de Ferro Carajás e expandir o porto de Ponta da Madeira em São Luís. Em que consistem esses projetos?

Dário Bossi - É um segundo Programa Grande Carajás. A Vale disfarçou, chamando-o de “expansão”, “capacitação logística” ou alegando que se trata de ajustes estruturais a alguns segmentos da ferrovia. Na prática, está sendo aberta uma nova mina, construída uma segunda ferrovia e ampliado o porto com a instalação de um píer totalmente novo.

Essa duplicação é ilegal, pois para um projeto de tamanha complexidade e magnitude não foi realizado um adequado Estudo de Impacto Ambiental e não foram realizadas audiências públicas nas comunidades atingidas como prevê a Lei.

Em poucos anos, até 2017, a Vale pretende chegar a escoar 230 milhões de toneladas de minério de ferro, mais que o dobro de hoje. Passarão trens em frente às comunidades com uma média de 27 minutos entre um e outro; já que, ao passar do trem, o barulho interrompe toda atividade ao longo de quatro minutos (pense, por exemplo, nas escolas), isso significa um sequestro do tempo dos moradores de quase duas horas por dia!

Esse projeto trará um lucro enorme à Vale. A extração e o escoamento do minério de ferro até o porto custa à empresa 22 dólares por tonelada. No porto, o minério é vendido por mais de 115 dólares a tonelada (cinco vezes mais!). Ao mesmo tempo, o segundo Programa Grande Carajás trará enormes impactos à população.

O Seminário “Carajás 30 anos” quer refletir sobre a história passada, evitar repeti-la, consertar os erros e propor à sociedade e à Amazônia um modelo novo!

IHU On-Line – Quais as consequências do Plano Nacional de Mineração para a região amazônica?

Dário Bossi - O Plano Nacional de Mineração visa facilitar a exploração mineira no país. Segundo o Plano, até 2030 a exploração de bauxita e ferro deverá aumentar três vezes, a do ouro três vezes e meia, e a do cobre e níquel mais de quatro vezes.

A frente de exploração mais visada, em que existem mais solicitações para licença de pesquisa e lavra, é a Amazônia. A pressão para rápida discussão do PL sobre mineração em terras indígenas é outro indicador preocupante para essa região.

A única concessão que o novo Marco Legal da Mineração vem oferecer à sociedade que vive no entorno das regiões ‘mineráveis’ ou que está ameaçada pela infraestrutura do escoamento é o aumento dos royalties. Essa medida, em si, ainda não garante justa repartição da riqueza, por não existirem garantias de adequado controle social.

Por outro lado, paradoxalmente, se isolada de um conjunto de outras medidas importantes, pode chegar a amplificar ainda mais a sede de mineração, pelo interesse de municípios e estados em acumular compensação financeira.

O Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração tem uma série completa de propostas alternativas e eficazes que garantiriam uma boa reforma do velho Código de Mineração e a defesa da região amazônica, bem como de todo o território e as populações do Brasil.

IHU On-Line – Que temas serão discutidos no Seminário Internacional “Carajás 30 anos: resistências e mobilizações frente a projetos de desenvolvimento na Amazônia Oriental”?

Dário Bossi - O Seminário pretende escutar as comunidades que se consideram atingidas pelo Programa Grande Carajás, especialmente nos estados de Pará e Maranhão. A partir do ponto de vista de agricultores rurais, moradores de periferias urbanas, indígenas, quilombolas, com a contribuição analítica do mundo acadêmico e de algumas instituições públicas e com a reflexão militante de vários movimentos sociais, o objetivo é verificar se o ‘desenvolvimento’, prometido a essas populações 30 anos atrás, efetivamente as beneficiou e garantiu qualidade de vida, integridade das relações interpessoais e com o meio ambiente.

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