• 13 de novembro de 2023
  • JORNAL DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Ponto de não retorno

Um senador mui amigo me perguntou se eu acreditava no tipping point, ponto de não retorno, a partir do qual se desencadeariam processos irreversíveis de degradação da floresta amazônica. Lembrei que todo ambiente natural exposto à degradação chega ao ponto de não poder mais se regenerar por si mesmo. As Amazônias são muitas, envolvem águas e terras dos dois hemisférios e, talvez, um único tipping point não desse conta do recado. Há previsão científica de que poderá ocorrer a perda de umidade e biodiversidade generalizada, com a prevalência de fitofisionomias vegetais e ecossistemas mais secos e empobrecidos, na sua parte oriental, mais suscetível ao ressecamento.


O mais interessante na pergunta do senador foi o recurso ao verbo “acreditar”. Isso porque ele não acredita. Considera o tipping point uma invenção do catastrofismo ambiental para frear a economia da Amazônia, que só seria possível por meio do desmatamento, que, portanto, seria “natural”. Já a natureza, propriamente dita, seria um obstáculo indesejável ao desenvolvimento da região. Mesmo incrédulo, ele não acha de todo mal um tipping point.


O senador entende que esse fenômeno está mais para a religião do que para a ciência. Associa-o ao apocalipse. Mas não ao apocalipse oficialmente reconhecido pela Bíblia, mas a outro adredemente forjado por socioambientalistas para assustar o povo e prejudicar o desenvolvimento da pecuária, da monocultura e da mineração. Assim, se o apocalipse for do mal, o tipping point seria pior ainda.


“Apocalipse now”
Foi grande o desespero do senador quando a edição atual do fenômeno El Niño provocou ciclones extratropicais que devastaram o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e a seca atroz que afetou a Amazônia. Ele tinha apostado uma boa grana na previsão furada de enchentes e secas normais. Quando viu a sua dimensão catastrófica, passou a advogar que as suas causas eram naturais. Essa seria a diferença entre os dois tipos de apocalipse.


O senador entendeu que o El Niño é um fenômeno natural decorrente do excessivo aquecimento das águas do Pacífico Equatorial, que costuma ocorrer em intervalos entre quatro e sete anos. Mas não incorporou a informação de que a sua atual versão, mais aguda e prolongada, explica-se pelo aquecimento concomitante das águas do Atlântico Equatorial, que inibe a formação de nuvens e o transporte de chuvas através da Amazônia. As altas temperaturas dos oceanos decorrem do efeito estufa e da concentração na atmosfera de gases emitidos pela queima de combustíveis fósseis e pela destruição de florestas.


Mesmo assim, o senador tende a naturalizar a estiagem e a acusar quem a associe à crise climática global. Tentei lhe explicar que reconhecer e enfrentar as causas antrópicas (provocadas pela espécie humana) do aquecimento global é um caminho de solução, e que muito pior seria ficar esperando pela complacência do sol em reduzir explosões e a emissão de ondas de calor, ou qualquer outro fenômeno natural imponderável.


Mas ele não pode aceitar a ideia de que o modelo econômico predatório, baseado no desmatamento, na agropecuária extensiva e na mineração, seja a razão da tragédia. Perguntei como ele entendia o apocalipse: para ele, trata-se do “fim do mundo”, e não uma passagem para o Reino dos Céus. Fica a impressão de que ele nunca leu o Apocalipse, embora se considere religioso.


Ciência ad hoc
O senador não reconhece a existência de uma ciência do clima. Vê a meteorologia como uma espécie de loteria e o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês) como um instrumento da ONU para legitimar a crença, ou o engodo, da mudança climática, o que mostra o seu apreço pelo conhecimento científico.


Ele, então, convidou um cientista “seu” para falar numa comissão do Senado, que zombou dos pesquisadores que previram um El Niño mais intenso. Horas depois, 51 pessoas morreram, vítimas de enchentes provocadas por um ciclone extratropical. O sábio falou que a eventual supressão de toda a floresta amazônica não afetaria o clima, enquanto uma densa nuvem de fumaça de queimadas próximas deixava Manaus irrespirável.


O cientista do senador negou que haveria uma estiagem forte no Amazonas, mas, logo após, rios caudalosos ficaram reduzidos a filetes de água, comunidades ficaram isoladas e desabastecidas, houve mortandade em massa de peixes e de outras formas de vida. Ficou provado que qualquer um pode ter o seu cientista, mas também que ele pode não servir para muita coisa por muito tempo.


As cenas da estiagem amazônica são desoladoras. A previsão é de um final de ano com chuvas abaixo da média. Ninguém sabe ao certo o que vai ou não se recompor. Tipping point não é decreto e não é algo a se ficar esperando. É o alerta. E o que já está posto é mais do que suficiente para rever crenças e reconhecer a ciência.


*Márcio Santilli é filósofo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Autor do livro Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais. Deputado federal pelo PMDB (1983-1987) e presidente da Funai de 1995 a 1996.


(Envolverde)

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