Cenário coloca futuro da humanidade em risco, diz Pnuma, que aponta contradição entre compromissos climáticos brasileiros e intenção de expandir óleo e gás
A produção de combustíveis fósseis planejada pelos governos do mundo inteiro para 2030 é 110% maior do que o compatível com a meta do Acordo de Paris, que objetiva limitar o aquecimento global a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais. A conclusão é do Relatório de Lacunas para a Produção 2023 (PGR, sigla em inglês para Production Gap Report), publicado nesta quinta-feira (8/11) pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). A produção prevista impediria a humanidade de atingir até a meta menos ambiciosa de Paris, de 2ºC (neste caso, explodindo o limite em “apenas” 69%).
Os planos governamentais analisados apontam crescimento na produção global de carvão até 2030 e na produção de óleo e gás até, no mínimo, 2050, a despeito das metas climáticas acordadas (e das necessidades do planeta). Lançado pela primeira vez em 2019, o PGR é uma parceria do Pnuma com o Instituto Ambiental de Estocolmo (SEI), o Climate Analytics, o Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (IISD) e a organização E3G.
“Os planos dos governos para expandir a produção de combustíveis fósseis estão minando a transição energética necessária para alcançar a meta de zero emissão líquida [de gases de efeito estufa], criando riscos econômicos e colocando em questão o futuro da humanidade”, afirmou Inger Andersen, diretora-executiva do Pnuma. Andersen deu ainda um recado à próxima Conferência do Clima da ONU, que começa em menos de duas semanas em um petroestado, os Emirados Árabes Unidos. “A partir da COP28, as nações devem se unir em prol da eliminação progressiva [phase-out, em inglês], planejada e equitativa de carvão, petróleo e gás – para amenizar as turbulências que se aproximam e beneficiar todas as pessoas neste planeta”, disse.
O relatório apresenta, ainda, uma avaliação das metas climáticas dos 20 países que mais produzem fósseis. Juntos, eles respondem por 82% da produção e 73% do consumo desses combustíveis no mundo. No entanto, ainda que 17 dos 20 países tenham se comprometido a atingir emissão líquida zero e muitos tenham lançado iniciativas para reduzir as emissões no processo de produção fóssil, nenhum deles tem metas de redução de petróleo, carvão e gás que sejam compatíveis com 1,5ºC.
“Muitos desses países continuam a promover, subsidiar e planejar a expansão da produção fóssil”, diz o relatório. África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Austrália, Brasil, Canadá, Cazaquistão, China, Colômbia, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos, Índia, Indonésia, Kuwait, México, Nigéria, Noruega, Qatar, Reino Unido e Rússia compõem a lista dos maiores produtores. A figura abaixo mostra a diferença entre a produção planejada, os compromissos climáticos dos países e as metas do Acordo de Paris.
Planos e projeções de produção de fósseis ultrapassam em muito as metas climáticas. (Fonte: PGR 2023)
Reforçando mensagens já mais do que conhecidas – mas ainda longe de serem concretizadas –, o relatório destaca que, dada a falta de comprovação e os riscos de tecnologias para remoção, captura e armazenamento de carbono, a gravidade da emergência climática exige que os países atuem para a eliminação da produção de carvão até 2040 e para um redução combinada da produção de óleo e gás de no mínimo 75% até 2050, na comparação com os níveis de 2020. Os países com maior capacidade de transição energética devem comprometer-se com metas mais ambiciosas e ajudar a transição nos países que contam com menos recursos.
O relatório lembra que o ano de 2023 é a prova definitiva de que as mudanças climáticas não vão dar trégua. Julho de 2023 foi o mês mais quente já registrado e, muito provavelmente, o mais quente em 125 mil anos, segundo dados divulgados também nesta quarta-feira pelo Copernicus, o sistema europeu de observação da Terra. O ano já é o mais quente desde o início das medições e contou com ondas de calor mortais, secas, incêndios florestais, tempestades e enchentes ao redor do mundo que atingiram milhões de pessoas e acentuaram desigualdades.
No entanto, destaca o texto, “as emissões globais de CO2 – quase 90% delas oriundas de combustíveis fósseis – atingiram níveis recorde no período de 2021 a 2022”. “A COP28 pode ser um momento de virada, em que os governos finalmente se comprometam com a eliminação gradual [phase-out] dos combustíveis fósseis e reconheçam o papel que os países produtores devem ter para conduzir uma transição planejada e equitativa”, afirmou Michael Lazarus, do Instituto Ambiental de Estocolmo.
Um alento destacado no relatório é que 34 países, incluindo quatro dos 20 maiores produtores (Alemanha, Canadá, China e Indonésia), se comprometeram a encerrar o financiamento público para combustíveis fósseis “não-abatidos” (para os quais não há sequestro de carbono) e redirecionar o investimento para energia limpa. No entanto, como destaca o próprio texto, ainda pairam muitas dúvidas quanto à própria definição de fósseis “não-abatidos” (unabated, na expressão em inglês), o que pode nublar a efetividade da medida.
O ponto mais sensível são os países que, contando com reservas significativas de óleo e gás, pretendem seguir expandindo sua produção em curto e longo prazos. Apenas cinco países entre os maiores produtores apontam uma redução nas projeções, mas dois deles – Noruega e Reino Unido – “tendem a subestimar a produção futura” e, diante da recente crise energética, implementaram políticas de subsídio aos fósseis, aponta o PGR.
Os outros três, Colômbia, Índia e Indonésia, são os que menos produzem entre os grandes, respondendo por menos de 1% da produção global. Na outra ponta, Brasil, Arábia Saudita e Estados Unidos projetam crescimento de 2 milhões de barris de petróleo cada por dia até o fim da década – volume que significaria, somado, um aumento de 10% na produção de petróleo em relação a 2021.
A contradição brasileira
Um dos pontos de destaque do relatório é a intenção, declarada pelo governo brasileiro, de impulsionar o país ao posto de quarto maior produtor de petróleo do mundo. Ao mesmo tempo em que coloca a agenda climática no centro de sua agenda internacional, o país pretende insistir na exploração de óleo “até a última gota”, contradição que mereceu destaque no documento do Pnuma.
“Apesar dos compromissos climáticos ambiciosos, muitos países expressam intenções de expandir suas participações no mercado global de petróleo. O Brasil, por exemplo, pretende se tornar o quarto maior produtor de óleo no mundo, saindo da oitava posição em 2021”, diz o texto. A figura abaixo mostra a projeção de produção brasileira.
Brasil tem metas climáticas ambiciosas, mas prevê aumento na produção de petróleo e gás até 2050 (Fonte: PGR 2023).
Ao analisar a visão do governo brasileiro sobre a produção fóssil, o texto destaca que o governo Lula continua a apostar na abertura de novas fronteiras de petróleo como caminho para o desenvolvimento econômico e regional. Ao mesmo tempo em que anuncia a intenção de tornar-se neutro em carbono em 2050, os planos de expansão energética do país para os próximos dez anos (2023-2032) e também para 2050 indicam aumento na participação de petróleo e gás no setor.
“O plano para 2032 projeta aumento na produção de petróleo e gás na ordem de 63% e 124%, respectivamente, a partir de 2023”, diz o documento, que se baseou no plano de negócios da Petrobrás deste ano, nas projeções de investimentos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e no programa do Novo Mercado de Gás, anunciado pelo Ministério de Minas e Energia, para elaborar a avaliação.
“Apesar das suas promessas climáticas, os governos planejam investir ainda mais dinheiro numa indústria suja e moribunda, enquanto as oportunidades abundam num setor próspero de energia limpa. Além da insanidade econômica, é um desastre climático criado por nós próprios”, avaliou Neil Grant, da Climate Analytics, em fala não dirigida especificamente ao Brasil. Mas poderia perfeitamente ter sido.