Segurança ambiental e estratégica
Os recentes derrames de petróleo – do poço da Chevron e do navio da Modec – constituem um repetitivo alerta no Brasil. O derrame do Golfo do México já havia consolidado a necessidade de rever os conceitos e filosofia adotados nos processos e no ritmo de exploração e produção de petróleo.
A dependência do petróleo convencional permanece, na estrutura social de produção construída no último século, como fonte de energia para manter o sistema econômico funcionando. O petróleo é essencial para garantir produtividade social do trabalho na produção e circulação de mercadorias e pessoas em escala global e gerar excedentes econômicos. Estima-se em cerca de dois trilhões de barris de petróleo convencional de recursos remanescentes, capazes de manter o suprimento no ritmo atual com crescimento, pelas próximas três ou quatro décadas. A vantagem do petróleo sobre as demais fontes é econômica: seu custo de produção direto, somente capital e trabalho alocados – sem transferências, taxas e tributos – situa-se entre US$ 1 e US$ 10 por barril. Seu preço oscila entre US$ 70 e US$ 100. Os cerca de 30 bilhões de barris de petróleo produzidos anualmente (85 milhões por dia) geram um excedente econômico (renda petrolífera, lucro suplementar, acima dos lucros médios do sistema capitalista concorrencial) de mais de US$ 2 trilhões num PIB mundial de US$ 65 trilhões. Reside aí a disputa pelo acesso e controle dos recursos, uma vez que, no estágio tecnológico e padrão de recursos disponíveis, qualquer substituto em larga escala, tem custo superior a US$ 80 (carvão liquefeito) ou etanol brasileiro ou norte-americano, com escala para substituição parcial (US$ 50 – US$ 60). Isto tudo sem considerar os impactos ambientais locais e globais. Neste contexto a importância do pré-sal brasileiro assume um caráter duplamente estratégico, como uma das três fronteiras de expansão da capacidade de produção de petróleo, ao lado da África e da Ásia Central.
O primeiro debate essencial – varrido debaixo do tapete em Brasília – é sobre o ritmo de produção e destinação do excedente econômico. Também sobre vinculação com a construção de um novo país, capaz de reformar sua educação e saúde públicas, de fazer a reforma urbana e agrária, de garantir a proteção ambiental e de promover a transição energética para fontes renováveis sem sacrificar socialmente a produtividade do trabalho. O modelo aprovado no final do governo Lula está muito longe de abrir este caminho e precisa ser revisto.
O segundo desafio em todos os países, e de forma essencial no Brasil, está em garantir a segurança ambiental das operações na exploração e produção de petróleo. Há lições relevantes na história recente da humanidade. Quando foram constatados os riscos representados pelas operações na indústria aeronáutica e, logo depois, na área nuclear ficaram patentes, foi adotado o princípio da precaução como filosofia para desenvolver as atividades. Os desastres de contaminação ambiental na indústria química (Minamata no Japão, Foxborough nos Estados Unidos) e acidentes (Bhopal na Índia) conduziram à adoção de medidas inspiradas na experiência nuclear. Pelo princípio da precaução, o ônus da prova de segurança é invertido: cabe ao proponente de qualquer operação de risco demonstrar, previamente, a segurança cabal das ações a serem desenvolvidas. Isto exige a classificação de componentes, equipamentos, estruturas e sistemas em classes de segurança, segundo a sua função, natureza e grau de risco para o ambiente, para o pessoal ocupacional e para a população em geral. Para cada classe de segurança há procedimentos específicos a serem seguidos: a verificação independente de projetos, o rastreamento e certificação de materiais, e a certificação das pessoas envolvidas nos projetos, construção e operação das instalações, estruturas, equipamentos e sistemas.
Até recentemente além de incipientes e precários, os resquícios presentes dos conceitos de precaução na indústria petrolífera, eram, paradoxalmente, da relação entre as empresas e suas seguradoras. Para obter o seguro financeiro, as empresas eram obrigadas a obter algum tipo de certificação de conformidade de entidades independentes com credibilidade internacional (Bureau Vertitas, A.B.S., Lloyds, Det Norske Veritas). Após o derrame do Golfo do México ocorreu uma redução na contratação de seguros, o que agravou mais ainda o problema, pela redução da verificação independente. No ambiente de autosseguro, a própria cultura das empresas passou a prevalecer para lidar com risco, ao qual, todavia, estão expostos o ambiente e a sociedade.
No Brasil, a única organização preparada, em grau de excelência internacional, para lidar com a situação é a Petrobras, mercê de mais de uma década de investimentos bilionários em segurança, meio ambiente e saúde ocupacional, com resposta aos desastres da Baía da Guanabara, da Vila Socó, do Rio Iguaçu e da P-36. ANP, Ministério de Minas e Energia, Ibama, Ministério de Meio Ambiente, governos federal, estaduais e municipais estão despreparados. O nível de despreparo pode ser aferido pelas declarações dadas por autoridades após o derrame do Golfo do México: as multas e penalidades no Brasil eram elevadíssimas para violações! Trata-se de uma posição ingênua: acreditar que a ameaça de multas pudesse se sobrepor ao trabalho de adotar novos conceitos e filosofia, traduzi-las em instrumentos normativos e estruturas institucionais, e, acima de tudo, recrutar e formar recursos humanos requeridos para isso.
O enorme excedente econômico viabiliza os recursos requeridos para minimizar os riscos até o grau aceitável para a sociedade, e para a reputação e viabilidade da indústria, fazê-lo representa a menor conta e constitui a única forma de resolver o problema. A sociedade precisa, porém, se organizar e saber como fazê-lo. Para a estratégia do país, recoloca-se, junto com o desafio de garantir a segurança, a necessidade política de rever o modelo de exploração de petróleo, o ritmo de produção e a destinação dos excedentes econômicos para garantir a mudança social em favor do povo, o verdadeiro soberano dono dos recursos naturais, ao invés de permitir, como está ocorrendo hoje, sua apropriação para formação de uma oligarquia de fazer inveja àquela que vicejou na Rússia do período Ieltsin.
* Ildo Sauer é diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e ex-diretor da Petrobras. Especialista em fontes energéticas.
** Publicado originalmente no site da Carta Capital.