TERRAMÉRICA – Lixo a caminho da privatização
O eterno ofício de encontrar no lixo algo que sirva para ganhar alguns pesos adquire em Cuba uma nova dimensão para autônomos e cooperativas.
Havana, Cuba, 21 de outubro de 2013 (Terramérica) – A iniciativa privada na Cuba socialista e de economia centralizada está encontrado um lugar em um setor impensado: coleta e reciclagem de lixo. Para muitos é um meio de subsistência, outros encontraram uma mina de ouro. Para Pitusa, os dejetos dos habitantes de Havana são fonte inesgotável de recursos úteis. “Não desperdiço nada, recolho, seleciono, limpo e guardo para quando me faltar algo”, disse esse homem que recompõe uma janela e fabrica um móvel “multifuncional”.
“Tenho 43, anos e desde os 19 trabalho na reciclagem”, disse ao Terramérica, pedindo para ser identificado como Pitusa, porque não tem licença de autônomo. “Faço tantas coisas que não saberia como me registrar e pagar impostos”, justificou. No lixo há móveis quebrados, garrafas, vidros, tubos plásticos ou de ferro, carretilha de pesca, cadeiras, portas ou janelas velhas. “Nada é irreversível, embora fazer um móvel novo de um tareco (utensílio em desuso de pouco valor) não seja fácil. Para mim é algo artístico dar um uso a alguma coisa que foi abandonada e ninguém se importa”, afirmou com certo orgulho.
Pituza é um “buzo”, nome local do eterno ofício de encontrar no lixo algo que sirva para ganhar alguns pesos. “Neste momento, há 5.800 coletores com licença de autônomos, mas sabemos que são muitos mais os que não se registraram”, informou Marilyn Ramos, vice-diretora geral da União de Empresas de Recuperação e matérias-primas, a entidade estatal que cuida da reciclagem do lixo. Odilia Ferro se dedica “legalmente” a recolher e vender lixo reciclável há cerca de dez anos, em San José de las Lajas, capital de Mayabeque, província vizinha a Havana.
“Às vezes vou à rua buscar eu mesma, mas, como as pessoas sabem que trabalho nisso, vêm à minha casa para vender”, contou Ferro ao Terramérica. Ela compra alumínio, bronze, aço, plástico e garrafas de rum e cerveja. Até julho vendia esse material para a empresa estatal de recuperação de Mayabeque, então convertida em cooperativa de nove integrantes, quatro delas mulheres. “O bom é que agora sempre há dinheiro para comprar o que trazem, e à vista”, destacou.
Nesse país de regime socialista, as cooperativas estiveram restritas por muitos anos à agropecuária. Em meados do ano, o governo de Raúl Castro lhes abriu outros espaços como parte das reformas para criar um “socialismo próspero e sustentável”. Nas primeiras 124 criadas, há duas dedicadas a recuperar lixo. A intenção do governo é que cada um dos 168 municípios cubanos tenha uma cooperativa de recuperação de dejetos.
Ramos admite que a empresa estatal não tem condições de chegar à porta de cada casa que gera esse lixo. Isso fica para o incipiente setor privado, enquanto ao Estado são reservadas as grandes fontes de lixo recuperável, declarou em entrevista ao Terramérica. Superando os preconceitos, a contadora Eida Pérez, de 39 anos, encontrou um filão na recuperação de lixo. A cooperativa que dirige conseguiu em dois meses lucro equivalente a US$ 14.750. Em Cuba o salário médio gira em torno dos US$ 19. “Há três anos não imaginávamos que isso poderia acontecer”, afirmou.
Dessa forma, Pérez se encaminha para a autonomia trabalhista, superando medos e conceitos de um passado recente, no qual só se fazia o que era orientado “de acima”. “Aumentamos os produtos recuperados. Agora nos consideramos mais eficientes e em vantagem com relação às empresas estatais, porque não estou de mãos amarradas. Operamos com dinheiro, podemos pagar mais se o serviço merecer, arrendar nossos caminhões e contratar os serviços de autônomos”, ressaltou.
“De todos os produtos que compramos retiramos 50%” de diferença, contou Pérez. Suas sócias e seus sócios, que a elegeram presidente, esperam chegar ao final do ano com uma boa margem de lucro. Nesses dois meses, já terão pago o empréstimo inicial, sem juros, equivalente a US$ 5.400. No começo, a maioria dessas novas cooperativas foi criada por iniciativa estatal, entregando aos empregados a operação de uma atividade que o Estafo fazia.
“É um mau começo, porque um princípio básico dessas formas de gestão empresarial é a vontade individual”, observou ao Terramérica um economista que pediu para não ser identificado. Contudo, para Ramos, “o benefício é duplo. Aumentamos a recuperação de lixo reciclável e evitamos que sigam para o lixão, ou seja, que também haja um impacto ambiental”. Nesse país funcionam 986 lixões que, em 2012, receberam pouco mais de 5,33 milhões de toneladas de lixo, segundo o Escritório Nacional de Estatística e Informação.
No ano passado, foram recuperadas aproximadamente 420 mil toneladas de lixo: aço, ferro fundido, chumbo, bronze, alumínio, papel, papelão, plásticos, têxteis, lixo eletrônico e vasilhames de vidro. Esses produtos foram exportados ou vendidos para indústrias nacionais: siderúrgicas, fábrica de cabos e empresas de papel e papelão. Se essas indústrias tivessem que importar esses insumos, o país teria pago US$ 120 milhões, segundo Ramos. “Queremos industrializar cada vez mais esse trabalho e aumentar o valor agregado dos produtos reciclados”, enfatizou.
A União estatal que dirige a reciclagem quer propiciar cooperativas provinciais que cuidam de processar ,“ainda que de forma simples”, o lixo que obtiver. Hoje funcionam apenas duas unidades separadoras de lixo. O ideal, admite Ramos, seria que as famílias classificassem o lixo. Mas esse sonho, que exige fortes investimentos, está longe para Cuba. Envolverde/Terramérica