TERRAMÉRICA – Tartaruga amazônica em risco
O calor excessivo dos ninhos altera o equilíbrio de sexos das tartarugas amazônicas e pode colocar em risco sua reprodução.
Baixo Xingu, Brasil, 5 de dezembro de 2011 (Terramérica).- A preocupação da jovem bióloga crescia na medida em que recopilava dados para sua tese de mestrado. As tartarugas amazônicas que nasceram em dezenas de ninhos examinados em 2008 e 2010 eram todas fêmeas. E em 2007 foi registrado apenas 8% de machos. O sexo dos quelônios amazônicos, dos quais as tartarugas são a espécie maior, é determinado pela temperatura do ninho. Quando o calor supera os 32 graus centígrados nascem mais fêmeas.
A pesquisa de Cristiane Costa identificou uma temperatura média de 32,6 graus em 2007, de 34,5 e 35,9 graus em 2008 e 2010, respectivamente, nos ninhos da praia de Juncal, preferida pelas tartarugas para desovar no Tabuleiro do Embaubal, um arquipélago do Baixo Xingu na Amazônia brasileira oriental. “O que será das tartarugas se o aquecimento do planeta tende a ser mais acentuado na Amazônia, segundo vários estudos? No longo prazo, sua reprodução poderia ficar inviável por escassez de machos e morte de embriões pelo calor excessivo nos ninhos.
Trata-se de um animal que pode viver muitas décadas, embora não se saiba exatamente quantas. Isto permite reequilibrar sua razão sexual se as altas temperaturas não forem permanentes nem generalizadas, disse Juarez Pezzuti, doutor em ecologia de quelônios e orientador de Cristiane como professor da Universidade Federal do Pará. É necessário “monitorar por muitos anos” e avaliar os diversos fatores que afetam a reprodução, acrescentou. Um aumento de ovos não fecundados indicaria escassez de machos.
Juncal, berço conhecido da maior quantidade de tartarugas da Amazônia, vive uma situação singular. Em 2009, foi elevada à categoria de praia e acrescentada areia do rio, para reduzir a mortandade de tartaruguinhas provocada em 2008 pela inundação dos ninhos. Naquele ano, sobreviveram apenas 230 mil filhotes viáveis, 58% menos do que em 2007. Contudo, a areia colocada, de grãos grossos, elevou mais a temperatura dos ninhos ao reter mais calor, a ponto de matar muitos embriões e filhotes. Esse foi, provavelmente, um fator da baixa reprodução de 2010, quando se contou cerca de 320 mil filhotes viáveis, contra os 470 mil de 2009.
Os números são conhecidos porque há três décadas se desenvolve no Brasil um programa de proteção de quelônios amazônicos que compreende a coleta de tartaruguinhas nas praias controladas, seu cuidado nos primeiros dias de maior vulnerabilidade à depredação natural, a contagem e a liberação nos rios. Cristiane se preocupa com a possibilidade de as autoridades ambientais repetirem o erro de corrigir um fator de mortandade, as inundações, criando outro, o excesso de calor que, além do mais, não deixa nascer machos.
Nesse contexto, o aquecimento global permanece como ameaça futura. Na Amazônia brasileira, há pelo menos outra centena de áreas de desova semelhantes ao Tabuleiro do Embaubal, embora não tão maciços, destacou Juarez. As tartarugas migram muito. O cientista quer evitar alarmismos sobre riscos de extinção, que justificariam uma lei proibindo a caça das tartarugas, o que ele considera irracional.
Proibir o aproveitamento extrativo de quelônios e seus ovos contraria costumes arraigados em populações ribeirinhas, por isso é pouco efetivo e dificulta o manejo das espécies com participação das comunidades locais, convidadas a renunciar a uma fonte de alimento sem contrapartida e sob ameaça de repressão, alertou Juarez. Além disso, é permitida a pesca de algumas espécies de peixes de fato quase extintas, acrescentou.
As tartarugas amazônicas (Podocnemis expanda) estão em um grupo de baixo risco, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Há três décadas, temia-se por seu destino diante da queda vertical de sua população. E isso levou o governo a iniciar, em 1979, o Projeto Tartarugas da Amazônia, que conseguiu recuperar a reprodução e afastar o risco de extinção.
Por quase três séculos, esta espécie foi uma das principais fontes de proteína para a população amazônica, e sua gordura era usada para conservar alimentos e para outros fins variados, inclusive medicinais. Por isso, ganhou o apelido de “gado da Amazônia”. Melhor registrado em documentos históricos, está o consumo de seus ovos, que, além de alimento, são fonte de óleo que servia de combustível para iluminar os povoados amazônicos e para exportar para outras cidades do Brasil e do exterior.
As estimativas indicam colheitas anuais de 12 milhões a 48 milhões de ovos entre 1700 e 1860, baixando desde então, segundo constataram Juarez e seu colega George Rebelo, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, com base em documentos. As características desta tartaruga a tornam mais vulnerável do que outras espécies às alterações ambientais e à depredação humana. Chega a pesar mais de 60 quilos e pode pôr mais de cem ovos em um ninho. As fêmeas adultas chegam em massa às praias preferidas para a desova.
Por seus hábitos rígidos, “são mais sensíveis às mudanças, ao dependerem de ambientes específicos”, segundo Daniely Félix-Silva, doutora em biologia que realizou pesquisas sobre quelônios em várias partes da Amazônia. Não possuem, por exemplo, “a plasticidade da tracajá” (Podocnemis unifilis, também chamado tercay ou taricaya em outros países amazônicos), detalhou Daniely em referência à capacidade de se adaptar a meios e hábitos alimentares e reprodutivos mais flexíveis.
Essa “vantagem” da tracajá se reflete em sua abundância em toda a Amazônia brasileira, sucedendo as tartarugas como espécie mais capturada ilegalmente, apesar de ser menor, chegando a apenas oito quilos. Como faz ninho inclusive em meio à vegetação, pode resistir melhor ao calor. As tartarugas foram vítimas da economia extrativa que conduziu a ocupação da Amazônia, com a da borracha natural. A partir da década de 1960, somaram-se os polos industriais e a expansão agrícola subsidiada que aceleraram a invasão humana.
Ampliou-se o mercado para o consumo e comércio ilegais de carne e ovos de quelônios, e também foi disseminada a oferta de carne bovina e de frango, neutralizando parte da pressão sobre os animais silvestres. O novo ciclo econômico da Amazônia multiplicou as ameaças ambientais, como o desmatamento, causado sobretudo pela pecuária, pelas monoculturas com intenso uso de agrotóxicos e pela grande mineração.
Os quelônios são vulneráveis às intervenções no ambiente aquático, como as centrais hidrelétricas que são prioridades nos planos energéticos do governo. Alguns rios serão represados em vários pontos para fazer funcionar centrais grandes e pequenas. O pulso de cheias e estiagens dos rios amazônicos é vital para os quelônios, que se alimentam de frutas e vegetação das florestas inundadas durante o “inverno” chuvoso, acumulando reserva para o “verão” menos úmido e dedicado à reprodução, destacou Juarez.
As tartarugas também podem sofrer alterações nos areais onde fazem ninhos. As represas, em geral, inundam praias fluviais e podem reter ou modificar os sedimentos transportados pelos rios, alterando os bancos de areia. No caso do Rio Xingu, a hidrelétrica de Belo Monte, agora em início de construção, reduzirá as cheias nos cem quilômetros da Volta Grande, desviando parte de suas águas. Neste trecho, as tracajás ali dominantes serão as mais afetadas. Porém, em Tucuruí, central hidrelétrica inaugurada em 1984 na mesma Amazônia oriental, as tracajás foram as que melhor sobreviveram ao choque ambiental e hoje são abundantes na gigantesca represa, constatou Daniely.