Terramérica – Egito diante da batalha da água
Cairo, Egito, 10 de fevereiro de 2014 (Terramérica).- Enquanto o mundo se concentra em criticar a mão dura que os ditadores do Egito aplicam a qualquer sinal de oposição, pouquíssimos prestam atenção a um drama que o futuro presidente, civil ou militar, terá de enfrentar: a falta de água. Entre os assuntos mais urgentes estão a excessiva dependência de cultivos que consomem grande quantidade de água, o projeto de uma enorme represa corrente acima na bacia do rio Nilo, e a elevação do nível das camadas subterrâneas, que colocam em risco as bases de monumentos da era faraônica.
Em um contexto de crise política e repressão, passou quase ignorada a advertência feita no final de janeiro pelo Ministério de Irrigação e Recursos Hídricos: a atual disponibilidade anual de água por pessoa é de 640 metros cúbicos, enquanto o recomendado internacionalmente é de mil metros cúbicos por pessoa. O ministro Mohammad Abdel Muttalib apontou que essa disponibilidade cairá para 370 metros cúbicos até 2050 devido ao veloz aumento de uma população que hoje é de 84 milhões de pessoas.
Um cientista que trabalha no setor dos recursos hídricos afirmou ao Terramérica que “os militares são uma das poucas instituições que podem conseguir que as coisas sejam feitas”. Mas, reconheceu, “estiveram no poder por muito tempo e nada fizeram”. Melhorar as práticas de irrigação e deter a explosão demográfica são duas medidas comumente cobradas para abordar o problema. Além disso, reduzir o uso de agroquímicos e também melhorar os sistemas de saneamento e disposição do lixo pode impedir que se contamine a pouca água disponível.
O setor agrícola consome muito mais de 80% dos recursos hídricos anuais. A cana-de-açúcar leva uma grande parte, junto com o arroz e o algodão. As autoridades proibiram o cultivo de arroz em algumas regiões, por sua grande necessidade de água, e isto apesar de seu alto preço internacional, de ser um alimento básico da população e de, em certas quantidades, os arrozais ajudarem a controlar a salinidade do solo e limitar a entrada de água salgada no delta do Nilo.
Também seria positivo reduzir o consumo de açúcar, e não apenas por toda água que a cana absorve. Em qualquer esquina do país se vende o apreciado suco extraído da cana-de-açúcar, a garapa. As pessoas que o consomem estão convencidas de suas propriedades para “purificar os rins”. O onipresente chá e o café são bebidos com muito açúcar. A incidência de diabetes aumentou 83% nos últimos anos, segundo dados epidemiológicos, mas há escassas tentativas de informar o público sobre os riscos para a saúde do consumo excessivo de açúcar, ou de quanto os canaviais são sedentos.
Um problema grave é que as antigas práticas de irrigação continuam em vigor, pontuou ao Terramérica o especialista em hidrologia Hussein Jeffrey John Gawad, que trabalha como consultor. “Como a água sempre foi abundante, os agricultores continuam inundando suas terras como antes. Muita gente deve começar a medir quanta água usa, mas aqui é duro romper as tradições”, ressaltou.
Em certas áreas, é o excesso de água que causa problemas. O rosto mais famoso do Egito no mundo – e ímã para o turismo que até o levante de 2011 representava um décimo do produto interno bruto nacional – também corre risco porque está subindo a água subterrânea em torno de vários monumentos da antiguidade faraônica, advertiu Gawad. A agricultura vai se expandindo e ignorando zonas arqueológicas. Levando junto canais de irrigação artificiais, aos quais se somam fertilizantes.
Esses líquidos penetram no solo, elevam a salinidade do lençol freático e molham as bases de rocha calcária de templos e pirâmides, enfraquecendo-os. O aumento do lençol freático em torno da tumba de Osíris, a única visível que resta em Abidos, um dos sítios arqueológicos mais importantes, a deixou quase inacessível por causa de uma inundação de areia e água. Em certo momento o governo tentou instalar um sistema de drenagem, “mas agora a atenção das autoridades para este problema é zero”, observou Gawad. Em alguns sítios foram instaladas bombas e tubulações para drenar, com resultado variado.
Na década de 1960, uma operação internacional encabeçada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) salvou os enormes blocos dos templos de Abu Simbel de ficarem submersos na represa de Asuan, recolocando-os em uma colina artificial. Entretanto, o enfraquecimento, gradual mas permanente, das bases dos templos e a contínua erosão de antigos relevos e pinturas não despertam o mesmo interesse.
Enquanto isso, a decisão da Etiópia de desviar o rio Nilo Azul, tributário do Nilo, para construir a represa do Grande Renascimento, pode ter um peso decisivo no futuro fornecimento hídrico do Egito. Segundo os acordos de tempos coloniais, o Egito manteve o controle de uma vasta maioria das águas da bacia do Nilo. Contudo, em meados de 2010, quatro países águas acima – Etiópia, Quênia, Ruanda e Tanzânia –, aos quais somou-se Burundi no ano seguinte, assinaram um tratado para compartilhar os recursos da represa. O projeto começou formalmente em abril de 2012.
“A Etiópia tem o direito de usar a água que corre por seu território”, opinou Gawad. “Mas o governo do Egito se prende aos acordos coloniais quando lhe convém e os joga fora quando não”, acrescentou. Um estudo do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola indicava, em 2005, que 98% da agricultura egípcia era regada com água do Nilo ou de aquíferos cuja recarga também depende do fluxo desse grande rio.
Durante o curto mandato do deposto Mohammad Morsi (2012-2013), se falava em “ir à guerra” se a represa fosse concretizada. Depois da sua queda, as autoridades esclareceram que tal opção está descartada.
Na Etiópia, perguntar pelos méritos e financiamento da represa pode representar risco de prisão para os jornalistas. E seu governo não mostra nenhuma vontade de considerar alternativas. Foram feitos pouquíssimos estudos confiáveis sobre possíveis efeitos do projeto. Mas a redução do caudal do Nilo, que corre águas abaixo pelo território do Egito, trará, sem dúvida, novos perigos para sua economia e, portanto, para sua estabilidade.