• 24 de outubro de 2011
  • JORNAL DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
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Águas caras para o Nordeste pobre

Salgueiro, Brasil, 20/10/2011 – O impacto visual é agressivo. Cerros cortados, vales aterrados e as terraplenagens que se estendem por muitos quilômetros. A intervenção humana na natureza do Nordeste do Brasil recorda outras grandes construções, mas também preocupa por sua enorme dimensão. São 713 quilômetros de canais, aquedutos, represas, túneis e sistemas de bombeamento para puxar água do Rio São Francisco, que cruza boa parte do Centro-Oeste do país até os altiplanos e desemboca no Oceano Atlântico, para abastecer bacias que secam durante a longa estiagem no extremo Nordeste, parte do chamado Polígono das Secas.

A transposição é complexa porque os canais têm de ter um declive preciso, de apenas dez centímetros para cada quilômetro, cruzando terras de superfície ondulada, para a água escorrer lentamente. Domar a topografia adversa exige 42 aquedutos sobre baixadas e cinco túneis em montanhas, além de imensas terraplenagens. Para elevar a água a 300 metros no eixo leste do projeto e 170 metros no eixo norte serão construídas nove estações de bombeamento, que consumirão muita energia em sua operação.

Por tudo isto, o custo do projeto já chega a R$ 6,85 bilhões, admitiu, em agosto o Ministério de Integração Nacional (MI), responsável pela execução das obras. O investimento total será maior do que o previsto, já que há trechos paralisados, contratos a revisar e serviços adicionais para contratar. Além disso, a obra registra grande atraso. Iniciada em 2007 para ser inaugurada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), dificilmente será concluída no mandato de Dilma Rousseff, que terminará em 2014.

Contudo, “não há motivo para temores” quanto ao preço que será cobrado dos consumidores pela água, pois será “adequado à realidade local”, assegurou José Luiz de Souza, coordenador de Projetos de Apoio ao Desenvolvimento, do MI. É que a população beneficiada está entre as mais pobres do Brasil. O preço considerará custos de operação e manutenção, garantindo a “sustentabilidade financeira” do projeto, explicou Souza. Não se fala em recuperar os investimentos.

Oficialmente chamada de Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, a transposição dessas águas assegurará oferta de água de boa qualidade para 12 milhões de habitantes de 390 municípios, segundo o governo. Inclui os Estados de Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. O megaprojeto é caro, mas se justifica em uma região de grave déficit hídrico, diz a economista Tania Bacelar, professora da Universidade Federal de Pernambuco e especialista em desenvolvimento do Nordeste.

A média de água disponível no Nordeste setentrional é de 450 metros cúbicos anuais por habitante, um terço do mínimo recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU), segundo o MI. A integração de bacias gera sinergia, isto é, benefício com juros, já que a água adicional favorece uma melhor gestão hídrica. O fornecimento assegurado em meses secos permite reter menos água nas represas, usando-a no desenvolvimento econômico e reduzindo perdas por evaporação, afirmam as autoridades.

Porém, as obras não conseguem consenso, apesar dos muitos argumentos favoráveis, incluindo chamados à solidariedade com o Nordeste, que tem 28% dos 192 milhões de brasileiros e bacias com apenas 3% da água doce disponível no país. Veementes opositores questionam a validade e a viabilidade do megaprojeto. Um deles, o agrônomo João Suassuna, afirmou que a transposição “será um elefante branco”.

O São Francisco vem perdendo capacidade hídrica devido à contaminação e sedimentação, além do desmatamento de suas costas, tornando insustentável o novo destino de suas águas já submetidas a múltiplos usos indevidos, alertou Suassuna. As represas localizadas neste rio geram 95% da eletricidade do Nordeste e suas águas abastecem projetos de irrigação em expansão, acrescentou. A seca de 2001 reduziu severamente o volume de seu caudal, limitando sua função energética, recordou.

Por isso, a prioridade deveria ser a revitalização da bacia, executada até agora de maneira deficiente, lamentou Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, vinculada ao Ministério da Educação e com sede no Recife, Estado de Pernambuco. Estas críticas são respondidas pelo governo federal com a afirmação de que somente será desviado 1,4% do curso do São Francisco, equivalente a 26 metros cúbicos por segundo. Um volume maior apenas será transpassado quando houver excedente de água nas represas, assegura.

Historicamente, só sobrou água, contadas vezes, em Sobradinho, a maior represa do Rio, disse o ativista, recordando que o São Francisco tem 60% de sua extensão no interior semiárido do próprio Nordeste, onde seus afluentes são intermitentes, o que limita sua alimentação. “Há 16 anos alerto sobre os riscos da transposição, mas agora falo das consequências”, disse Suassuna, autor de dezenas de artigos, muitos deles reunidos em um livro, com suas críticas ao megaprojeto.

As obras, que suprimem vegetação, agravam a desertificação de Cabrobó, município onde começa o eixo norte do projeto. Além disso, os canais interromperão as migrações de animais, “impedindo sua reprodução não consanguínea”, e levarão a desequilíbrios biológicos em bacias receptoras com entrada de peixes predadores procedentes do São Francisco, alertou Suassuna. Para ele, há alternativas mais baratas e eficazes.

Um estudo da Agência Nacional de Águas, entidade estatal reguladora do setor, sugere melhor aproveitamento dos recursos hídricos existentes no semiárido, como 70 mil açudes e águas subterrâneas. Outra ação, que alcança a população rural, a mais vulnerável às secas, é a captação e o armazenamento de água da chuva, tanto em cisternas para consumo humano como em sistemas familiares e comunitárias para irrigação da pequena agricultura.

A Articulação do Semiárido (ASA), que reúne cerca de mil organizações e movimentos sociais da região, já instalou mais de 350 mil cisternas e nove mil depósitos para produção. A irrigação em grande escala, que se pretenderia promover com a transposição, “não é sustentável porque saliniza o solo, devido à forte evapotranspiração”, segundo Jean Carlos Medeiros, coordenador do programa de cisternas, cuja meta é atingir um milhão de unidades. Essa salinização já afetou a produção de melões no Rio Grande do Norte, recordou.

As iniciativas da ASA não substituem o objetivo da transposição, que se destina principalmente à população urbana, mas disputam investimentos governamentais e a prioridade nas políticas públicas. Dirimir a controvérsia sobre a transposição das águas do São Francisco provavelmente só será possível quanto já estiver em operação, permitindo avaliar os resultados e compará-los com os da “microssolução” das cisternas. Entretanto, isto exigirá muitos anos, já que a construção do megaprojeto avança lentamente e há quem suspeite de que nunca terminará.

Lula e o bispo

Outrora conhecido como “rio da unidade nacional”, por ser uma hidrovia entre o centro e o Nordeste do Brasil, o Rio São Francisco se converteu em motivo de discórdia depois de secas trágicas, especialmente a de 1993, que reavivaram a proposta de transpor suas águas como alternativa para solucionar a escassez hídrica no interior semiárido do Nordeste. A ideia, nascida há dois séculos, foi inspirada em vários projetos nunca executados.

Finalmente foi implementado o que está em desenvolvimento por decisão de Lula, originário do Nordeste e filho de uma família que emigrou para São Paulo, fugindo da pobreza derivada em grande parte das secas. A reação de maior repercussão foi de Luiz Cappio, bispo católico de uma pequena cidade ribeirinha da bacia do São Francisco, que em 2005 e 2007 realizou seguidas greves de fome em defesa da suspensão do megaprojeto.

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