Ministério do Meio Ambiente abre edital de R$ 78 milhões que inclui novo sistema de detecção rápida de desmate; para ex-diretor do Inpe, medida é cara e não vai funcionar
Em plena alta do desmatamento na Amazônia e sem dinheiro para ampliar a fiscalização em campo, o governo brasileiro resolveu olhar não para a febre, mas para o termômetro: o Ministério do Meio Ambiente lançou um edital de R$ 78,5 milhões para a contratação de um novo sistema de monitoramento por satélite da devastação. Ele duplicará a função do Deter, sistema do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) de detecção de desmate em tempo real usado para municiar os fiscais do Ibama e considerado um dos principais responsáveis pela redução das taxas entre 2005 e 2012.
O secretário-executivo do MMA, Marcelo Cruz, afirma que o novo monitoramento, que será contratado de uma empresa privada, é necessário como “complementação”, porque o Deter deixou de atender às necessidades de fiscalização da Amazônia. Mas o criador do Deter, o ex-diretor do Inpe Gilberto Câmara, diz que a crítica “não se sustenta cientificamente” e que o tipo de serviço que o edital visa contratar é muito mais caro e inadequado para a tarefa. Nesta quinta-feira (4), o Ministério Público Federal do Pará abriu uma investigação sobre a contratação.
O edital foi lançado no dia 20 de abril, um dia depois da exoneração da diretora de Políticas de Combate ao Desmatamento do MMA, Thelma Krug. Oriunda do Inpe, Krug havia brigado com Cruz justamente por se opor à criação de um novo sistema de monitoramento, como o OC informou no dia 19.
A publicação do edital ocorreu sem alarde: pessoas do próprio ministério desconheciam a peça até sua existência ser revelada, na última quarta-feira (3), pelo portal Uol/Direto da Ciência e pelo jornal O Estado de S.Paulo. O fato foi noticiado à véspera do pregão digital, inicialmente marcado para esta quinta-feira (4). Uma petição on-line lançada ontem pelo pesquisador da UFMG Raoni Rajão demanda o cancelamento do edital.
Coincidentemente, chegaram ontem ao MMA dois pedidos de impugnação, feitos por duas potenciais concorrentes: um da Funcate, uma fundação que presta serviços ao MCTIC (Ministério da Ciência e Tecnologia), e um da empresa de sensoriamento remoto HexGIS, de Brasília. A Hex já havia sido contratada no passado pelo Ibama para prestar serviços semelhantes aos descritos no edital. Os pedidos causaram o adiamento do pregão para ajuste do edital.
A polêmica com o Inpe, porém, não deve arrefecer.
“O edital rompe com a ordem estabelecida”, disse Dalton Valeriano, coordenador de Observação da Terra do Inpe e responsável pelo Deter e pelo sistema Prodes, que dá a taxa anual de desmatamento da Amazônia desde 1989. Segundo Valeriano, a atribuição de monitorar o desmatamento foi dada ao Inpe pelos decretos presidenciais que criaram os planos de combate ao desmatamento na Amazônia, em 2004, e no cerrado, em 2010. “Estranhamos que o MMA, sem consulta aos órgãos técnicos, lance um edital de tal abrangência e que desrespeita as atribuições que vêm sendo dadas ao Inpe pelo governo federal.”
“O edital tem sérias falhas técnicas”, disse Câmara. “As exigências para as concorrentes são estranhas ao espírito de um pregão e podem reduzir os concorrentes a um única empresa. O edital contrata serviços de monitoramento do desmatamento apenas especificando o número de homens-hora estimado. Não há descrição dos produtos a serem gerados, nem uma metodologia técnica sólida que garanta a qualidade dos produtos. Sem especificação técnica que garanta a qualidade, há um enorme risco de desperdício e duplicação de recursos públicos”, prosseguiu.
O edital, de 161 páginas, prevê a contratação de “serviços especializados de suporte à infraestrutura de geoprocessamento e atividades de sensoriamento remoto”. Ele lista uma série de serviços de monitoramento a serem prestados a uma série de órgãos, como o Ibama, a Agência Nacional de Águas e a Funai. Apesar do custo total elevado, os serviços serão contratados sob demanda, ou seja, apenas o que for solicitado pelos órgãos será desembolsado, afirma o MMA.
Entre esses serviços, pelo menos quatro se chocam diretamente com atribuições do Inpe: 1) Analisar, inserir e manter bases cartográficas e temáticas georreferenciadas em banco de dados espacial; 2) Cálculo de emissões de gases de efeito estufa; 3) Processamento e interpretação de imagens do tipo SAR [radar] para identificação de alterações da cobertura vegetal; e 4) Desenvolvimento e aplicação de modelos matemáticos e/ou algoritmos e/ou redes neurais. Somados, tais serviços custariam em média R$ 10 milhões ao ano. O custo de monitoramento de todos os biomas brasileiros hoje é estimado pelo Inpe em R$ 5 milhões ao ano.
Dos quatro serviços, o mais dispendioso no edital é o primeiro, que duplica justamente funções do Prodes – o sistema que dá a taxa anual de devastação. O terceiro seria a criação de um Deter “alternativo”, com uso de imagens de radar para poder enxergar sob nuvens.
“INTELIGÊNCIA”
Em entrevista ao OC, Marcelo Cruz e Edson Sano, chefe do Centro de Sensoriamento Remoto do Ibama, negaram que queiram duplicar funções do Inpe ou terceirizar o Prodes. “Eu não quero ser o cara que vai medir o desmatamento; quero ser o cara que vai impedir o desmatamento”, afirmou o secretário-executivo, que tem um longo histórico de serviço público implantando sistemas de tecnologia de informação em outros ministérios.
Segundo ele, o objetivo é “complementar” as informações geradas pelo Inpe de forma a evitar “um novo susto como o que tomamos em 2016”. Naquele ano, dados do Deter apontavam desmatamento estável, mas o Prodes revelou um aumento de 30% na taxa, que surpreendeu o ministro Sarney Filho (PV-MA).
“O Deter funcionou bem no início, mas nos moldes de hoje ele não atende mais”, disse Sano. Segundo o chefe do Ibama, a inadequação ocorre por dois motivos: primeiro, porque o Deter não enxerga sob nuvens, o que permite monitorar o desmatamento “só quatro ou cinco meses por ano”. Depois, porque o perfil da devastação mudou desde a criação do Deter. Hoje se desmata mais em períodos de chuva e em polígonos menores, que escapam à resolução do satélite que fornece as imagens para o Deter.
Daí a necessidade de incorporar imagens de radar, uma tecnologia que permite enxergar sob nuvens (em oposição aos satélites Landsat, CBERS e Modis, que monitoram a Amazônia hoje e são ópticos). O Ibama já tem à sua disposição há anos imagens do radar japonês Alos. Segundo Sano, porém, o Alos tem resolução “grosseira”, de 100 metros – desmates ocorrem em áreas menores que essa –, e leva 45 dias para cobrir a Amazônia. O Deter “do B” que o edital quer contratar visa corrigir esse problema integrando imagens de um radar europeu, o Sentinel-1.
Gilberto Câmara, do Inpe, diz que o plano não vai funcionar. “O Sentinel-1é voltado para monitoramento marinho. Décadas de pesquisa científica mostram que imagens de radar do tipo Sentinel-1 são inadequadas para monitoramento rápido do desmatamento. Não é recomendável contratar serviços de mapeamento por radar, ainda mais por esse valor, sem suporte científico sólido.”
Segundo ele, “não é por falta de informação que o desmatamento está avançando, mas pela falta de recursos alocados no combate às atividades ilegais na Amazônia”.
Nos últimos anos, o orçamento do Ibama vem declinando à medida que o desmatamento sobe. A verba da fiscalização caiu quase à metade entre 2013 e 2016 – de R$ 121 milhões para R$ 65 milhões. A quantidade de fiscais diminuiu 30% nesse período. O desmatamento, por sua vez, aumentou 35% entre 2013 e 2016 – somente nos últimos dois anos a alta foi de 60%.
No ano passado, a penúria foi tão extrema que o ministro Sarney Filho precisou recorrer a R$ 15 milhões do Fundo Amazônia, dinheiro de doação internacional, para recompor o orçamento do Ibama e manter a fiscalização de pé – apenas para ver o orçamento de todo o MMA cair 53% no corte imposto pelo governo federal em março. Neste ano, a previsão é de mais R$ 45 milhões do Fundo Amazônia para o Ibama. O secretário-executivo afirmou que o Fundo Amazônia é uma das fontes de recurso que ele pretende captar para o novo sistema.
Questionado sobre se o dinheiro não seria melhor empregado reforçando a fiscalização, Cruz disse que o monitoramento é “a inteligência do sistema”, e repetiu que não quer calcular taxas anuais. “A gente pode até subsidiar o Inpe. Todo mundo é governo.”