Para especialista, feijão transgênico foi liberado no Brasil sem estudos consistentes
Segundo assessor técnico da AS-PTA, os testes de campo foram feitos em apenas três localidades, enquanto a lei exige que sejam gerados dados em todas as regiões onde a nova semente poderá vir a ser plantada
Em entrevista, o assessor técnico da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, Gabriel Fernandes, aponta as falhas na liberação de sementes transgênicas no Brasil e os problemas de seu uso indiscriminado. Apesar das polêmicas em torno do tema, segundo o assessor, somente entre 2008 e 2011 foram liberados 29 tipos de sementes transgênicas, entre soja, milho e algodão, e o feijão é o próximo alvo. Para piorar, o uso dos trangênicos avança em parceira com o aumento do uso de agrotóxicos nas lavouras.
Confira a entrevista:
Caros Amigos - Foram apontadas irregularidades e erros no estudo da Embrapa sobre o feijão transgênico 5.1. Gostaria que comentasse um pouco sobre as falhas encontradas no estudo.
Gabriel Fernandes - Foram apontados dois tipos de problemas: estudos não realizados e estudos de consistência duvidosa. Os testes de campo foram feitos em apenas três localidades (Londrina-PR, Sete Lagoas-MG e Santo Antônio de Goias-GO), enquanto a lei exige que sejam gerados dados em todas as regiões onde a nova semente poderá vir a ser plantada. Ou seja, as informações disponíveis são insuficientes em termos nacionais. Nenhum estudo ambiental foi feito no Nordeste, que responde por cerca de 25% da produção nacional de feijão.
Não foram feitos ensaios alimentares com animais prenhes nem ao longo de duas gerações, também requisitados por lei. Sem isso não se pode ter indicativos do risco potencial de médio e longo prazo decorrente da ingestão continuada desse produto. Lembremos que o brasileiro consome em média 9 kg de feijão por ano.
Um dos membros da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança apresentou parecer criticando a fragilidade dos dados da Embrapa, com destaque para a avaliação de segurança alimentar. De 10 ratos que fizeram parte de um experimento, apenas 3 foram testados, todos machos e antes de atingirem idade reprodutiva, quando há grandes mudanças hormonais. Mesmo assim foram observadas diferenças em relação aos que consumiram feijão comum, como maior tamanho das vilosidades do intestino delgado. Observou-se ainda diminuição do tamanho dos rins e aumento no peso do fígado dos animais alimentados com o feijoeiro 5.1. São dados que sugeririam ao menos a repetição dos ensaios. Cabe perguntar qual revista científica aceitaria publicar estudo feito com uma amostra que sequer permite análise estatística. Mesmo assim o parecer crítico foi derrotado.
Além disso, pesquisadores independentes da Universidade Federal de Santa Catarina criticaram o fato de dados indispensáveis à análise de risco do produto terem sido mantidos sob sigilo.
Caros Amigos - Como avalia a votação da liberação do feijão transgênico pela CTNBio no Brasil? Há pressões econômicas envolvidas?
Gabriel Fernandes - Já era esperada. A CTNBio nunca recusou um pedido de liberação comercial de transgênico. Uma vitória das empresas de biotecnologia dotou essa comissão de superpoderes, que passaram a vigorar com a nova lei de biossegurança, aprovada em 2005 pelo Congresso com o apoio do governo e dos ruralistas. Criou-se uma comissão composta por doutores, não-remunerados para este fim, que se reúnem uma vez por mês em Brasília. Suas decisões enquadram Ibama, Anvisa e demais órgãos da administração pública. Muitos de seus integrantes fazem pesquisa na área e podem se beneficiar direta ou indiretamente da liberação de transgênicos.
A novidade neste caso foi que o presidente da Comissão assumiu defesa pública do feijão modificado antes mesmo de sua votação, assim como outros 15 integrantes da Comissão, que promoveram abaixo-assinado on-line nas semanas que antecederam a votação, endereçado a várias autoridades, pedindo a liberação comercial do produto. Parece que o juízo estava formado antes mesmo da apresentação do voto contraditório e da conclusão do processo. A lei, entretanto, impede de votar aqueles que possuam envolvimento pessoal ou profissional com a matéria. O feijão foi aprovado com exatos 15 votos. Pedimos ao Ministério Público que avalie a ocorrência de conflito de interesses neste caso.
Caros Amigos - Um dos motivos bastante utilizados pelos defensores da liberação do feijão transgênico 5.1, foi que ele seria resistente ao vírus "Mosaico Dourado”. Há outras maneiras de se combater esse vírus? Se sim, quais são?
Gabriel Fernandes - Sim, e há alternativas da própria Embrapa que já comprovaram que o plantio orgânico de feijão é viável e rentável (clique para ver exemplo). A principal ideia da agricultura orgânica é aumentar o equilíbrio ecológico nas plantações, fazendo rotações de culturas, plantios diversificados e tratando o solo com matéria orgânica para que ele recupere sua capacidade produtiva. A planta que cresce num solo biologicamente ativo é mais resistente a pragas e doenças.
Por outro lado, há uma relação entre a ocorrência do vírus do mosaico dourado e o plantio intensivo de três safras seguidas no mesmo ano agrícola, bem como com o aumento da área de soja, que abriga o inseto vetor da doença. É uma visão um tanto reducionista achar que o problema será controlado com a alteração de um gene da planta mantendo-se todo o resto.
Caros Amigos - Poderia me dizer quais as principais diferenças entre a composição de um feijão normal e o feijão 5.1?
Gabriel Fernandes - Essa foi outra crítica feita em relação aos dados apresentados. Foram identificadas diferenças estatisticamente significativas nos teores de proteínas e de vitamina B12 quando a variedade modificada foi comparada com a parental, sendo que esses valores deveriam ter sido os mesmos. Quem acompanhou a votação em Brasília pôde ouvir os defensores da liberação argumentarem que esses valores, embora cientificamente válidos, não deveriam ser levados em consideração: “Se há mais de uma proteína e vitamina e menos de outra, não há problema, pois isso se compensa com o arroz, verdura ou outro alimento que será ingerido junto com o feijão”. Também falou-se que a panela de pressão pode anular as diferenças com o cozimento. (sic)
Caros Amigos - Quais outras conseqüências do feijão transgênico para a saúde e para a segurança alimentar?
Outras, para serem conhecidas, exigiriam estudos que não foram apresentados. O CONSEA manifestou à presidente Dilma sua preocupação com a liberação precipitada. O Ministério da Saúde votou pela diligência, pedindo mais estudos.
Caros Amigos - E para agricultura familiar e o meio ambiente, o que a liberação do feijão transgênico implica?
Ainda não está claro se a Embrapa cobrará royalties por suas sementes, assim como fazem as grandes empresas de biotecnologia.
Além disso há o risco de o agricultor trocar suas sementes por uma tecnologia que pode ter curta durabilidade. Os dados da Embrapa mostraram que até 36% das plantas derivadas da variedade transgênica foram suscetíveis ao vírus. Se isso se confirmar nas plantações, novas versões do vírus resistente poderão passar a causar prejuízos em um pouco tempo.
Outro problema potencial é a contaminação genética das sementes locais ou crioulas. Há estudos mostrando que pode haver até 13% de polinização cruzada entre plantas de feijão, embora não se saiba ao certo a que distâncias. Uma pesquisa de mestrado feita em 5 municípios do agreste paraibano identificou 55 variedades de feijoeiros adaptados às condições locais e mantidas por produtores familiares. A liberação do feijão transgênico não prevê nenhuma medida para preservar essa riqueza genética.
Caros Amigos - Qual sua avaliação sobre o tratamento governamental em relação à política alimentar no Brasil?
Gabriel Fernandes - Há avanços, mas no geral prevalece o apoio a monoculturas para exportação e à formação de gigantes para disputar espaço no mercado global. Basta ver o volume de dinheiro público investido na formação da Brazil Foods, Ambev e JBS-Marfrig. Além disso, o governo destina R$ 16 bi para a agricultura familiar, que ocupa 9 vezes mais pessoal do que a patronal e produz cerca de 80% da nossa alimentação. Já o agronegócio, que responde por apenas 16% dos estabelecimento agropecuários do país, receberá este ano mais de R$ 107 bi via plano agrícola e pecuário.
Os avanços dizem respeito a políticas de valorização da produção familiar que vêm fomentando práticas agroecológicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Ambos vêm criando importantes mercados para a agricultura familiar, sendo que o da merenda determina que pelo menos 30% da alimentação servida nas escolas da rede pública venham da agricultura familiar da região, com preferência para alimentos orgânicos.
Caros Amigos - Acredita que a liberação do feijão transgênico abre precedentes para outras liberações de transgênicos?
Gabriel Fernandes - Na verdade a porteira já foi aberta há mais tempo. Entre 2008 e 2011 foram liberados 29 tipos de sementes transgênicas, entre soja, milho e algodão, mais 10 vacinas de uso veterinário, uma levedura para produção de agrocombustível e testes com mosquito da dengue transgênico em bairros urbanos. A indústria investe mais em sementes transgênicas resistentes a agrotóxicos para fazer a venda casada. Entre 2003 e 2009, período de forte expansão da soja transgênica da Monsanto, resistente ao herbicida glifosato (“mata-mato”), o Brasil passou a usar 5 vezes mais esse produto, segundo a Anvisa. Em 2008 o Brasil passou a ser o país que mais usa agrotóxicos no mundo.
Por último, a liberação do transgênico “verde e amarelo” é tida por alguns como uma grande conquista nacional. E a indústria vem usando o feito para renovar suas promessas. Na esteira da euforia gerada algumas normas importantes podem ser mudadas para pior. A tendência é que se amplie a abrangência do sigilo sobre os pedidos de liberação de transgênicos e que sejam desmanchadas as regras que preveem que os impactos dos transgênicos ao meio ambiente e à saúde sejam monitorados depois que esses produtos são liberados para produção e consumo em larga escala. Tanto é assim que o presidente da CTNBio já convocou as empresas do setor, chamadas por ele de “nossos usuários”, para discutir a reforma dessas regras. E para concluir, não custa lembrar que esta comissão é órgão integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia.